• Futurismo e Utopia Negativa

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Reflexão e Crítica

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FUTURISMO E UTOPIA NEGATIVA NA CRÍTICA DA CULTURA:

Elaboração inicial para

Ler um texto de Theodor W. Adornoi.


Por

Jacob (J.) Lumier

Websitio Produção Leituras do Século XX – PLSV:

Literatura Digital



 



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Rio de Janeiro, Setembro 2007




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PALAVRAS-CHAVES = ideologia, utopia, futurismo, ficção, felicidade, fantasia, conformismo, crença.

CATEGORIAS =sociologia, indústria cultural, cultura de massa, standardização, crítica, classe burguesa,

estética, sociedade, idealismo, filosofia, técnica.




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Primeira Parte



No ensaio crítico sobre o Admirável Mundo Novo ii, Theodor W. Adorno nos leva a distinguir vários aspectos da ideologia do futurismo: uns mais interligados à descrição da fantasia, outros representados na formulação conceitual do futuro. Isto porque, se exercendo sobre o mundo administrado da comunicação social, a fantasia nada mais consegue do que figurar os prolongamentos de linhas já existentes na civilização técnica compondo, então nesses prolongamentos do Sempre Igual, uma montagem com a ideologia que se afirma inseparável da utopia negativa iii . Há pois que empreender a desarticulação dos dispositivos ideológicos para vislumbrar os horizontes da nova sociedade no futurismo, tendo em conta que a qualificação de ideológicos se aplica aos comportamentos motivados por separações fixando-se em alternativas. Só que as coisas não são tão simples assim. Se, por um lado, nessa desarticulação do ideológico se procede à seleção das descrições melhor aproveitadas na crítica da cultura que todo o futurismo traz em si, por outro lado a neutralização das alternativas assim obtidas constitui um meio para contrastar e pôr em relevo as conexões da utopia negativa, quer apontem estas as linhas para a nova sociedade quer apontando-as bloqueiem dela os caminhos. Ponderação esta por sua vez, tanto mais relevante que, assim como torna manifesto seu componente de classe burguesa, a ideologia do futurismo nutre-se dos postulados da filosofia da identidade, nutre-se do idealismo com o seu contraponto de teologia protestante (idéia de um Eu genérico idêntico em todos).


A reflexão estético-sociológica

alcança o futurismo

como projeção da utopia negativa à

medida que aprofunda na

desarticulação da ideologia do

futurismo.


Assim, por exemplo, Theodor W. Adorno destacará que o tema da felicidade na visão futurista produz uma cruel e inconciliável alternativa contrapondo “sentido objetivo e felicidade subjetiva”, na qual houvera que decidir entre “a barbárie da felicidade” (sob a standardização e a civilização técnica) por um lado e, por outro lado, “a cultura como estágio objetivamente superior, porém incluindo em si a infelicidade”, posto que, nessa visão ideológica, “a prova da nulidade da felicidade subjetiva significa a nulidade da felicidade em si”. Theodor W. Adorno assinalará a conseqüência deste dispositivo ideológico do futurismo como projetando colocar no lugar desta “felicidade em si” uma “ontologia considerada desde um tempo remoto e destilada a partir da religião e da filosofia”, ontologia que, por sua vez, culmina na afirmação de que “a felicidade e o Bem objetivamente supremo são inconciliáveis”, de tal sorte que uma sociedade aspirando somente à felicidade “marcharia inevitavelmente para a animalização mecânica”. Mas não é tudo. Observando os traços totalitários que se produzem mediante a fixação das separações em rígidas alternativas na utopia negativa, Theodor W. Adorno destaca que tal alternativa sobre a nulidade da felicidade, sendo combinada a esta outra que separa técnica (no caso a animalização mecânica) e humanidade ivtem por consequência a tese conformista de que a humanidade não deve lutar para escapar à desgraça, estando espremida ante a recaída em uma mitologia (a que se ligam os prognósticos místicos de A.Huxley) e o progresso para “a total iliberdade v de consciência” (na animalização mecânica). E nosso autor sentencia: “não sobra lugar para um conceito do homem que não estivera pregado pela constrição sistemática coletiva ou pela contingência do individual”: “o inevitável se produz na utopia negativa”. Entretanto, antes de outra coisa, devemos ter em vista que o conjunto de crença protestante articulada com a mirada raciocinante ou corretiva constitui um dos caminhos para Theodor W. Adorno construir a Crítica da Cultura. Desse modo, devemos distinguir inicialmente o comentário sobre a limitação ideológica da concepção do futuro, como tarefa de “decifrar a faticidade do que não é” por meio de prolongamentos do existente combinados a uma lógica corretiva. A apreciação que Theodor W. Adorno nos passa sobre a noção mesma de utopia já destaca o limite desta noção como inevitável recaída na filosofia da identidade, no idealismo. Desta sorte, mostra-se sempre falha “a irônica correção lógica” que busca sempre A. Huxley nos seus prolongamentos das linhas existentes. Tanto mais que por este engodo são montados os inverossímeis prognósticos simbólico-religiosos do “Brave New World”, preservando assim intacta diante das catástrofes previsíveis a tendência para a irracionalidade da civilização técnica. Quer dizer, há um truque nessa notada recaída na filosofia da identidade que leva a preservar oculta a tendência para a irracionalidade. Segundo Theodor W. Adorno, por trás de esse preservar no oculto deve-se distinguir a atitude da grande burguesia ao afirmar soberanamente que defende a sobrevivência da economia do lucro não por interesse próprio, mas por todos os homens; porque “se eles não tivessem que trabalhar tanto como eles têm não saberiam o que fazer com o tempo livre”. Estamos, portanto diante de uma sabedoria de frieza que carece de conteúdo cognitivo por coisificar não o mundo, mas os homens, tomando-os como dados exteriores na medida mesmo em que, nessa relação cognitiva, deifica o observador como instância livre. Dessa mesma sabedoria fria releva a ficção do futuro, releva o caráter fictício da preocupação com “a desgraça que poderia infringir ao homem a utopia realizada ao desaparecerem do mundo a fome e a ansiedade”. Por sua vez, essa ficção do futuro esconde uma transposição aos que ainda estão por nascer da culpa pelos males do presente, esconde o dogma do sempre foi assim e sempre será igual em que se resume a crença protestante de que: como o homem está manchado pelo pecado original e não é portanto capaz de Bem suficiente na Terra, a mesma melhoria do mundo se deforma empecado. E Theodor W. Adorno conclui que o romance de Aldous Huxley fracassa devido à debilidade própria de seu conteúdo efetivo: a indispensabilidade de um esquema vazio inevitável, a saber: a disposição de que (a) – “a transformação dos homens não podendo ser calculada e escapando à imaginação antecipatória”, (b) – adota-se a escolha em substituí-la pela caricatura dos homens de hoje. Nada obstante, note-se que não é a fantasia que fracassa, mas somente a mirada raciocinante para o futuro como tal. Quer dizer, ao sobressair o vazio desta mirada como reencontrando o caráter artístico da ficção do futuro, Theodor W. Adorno sublinha que o futurismo se deixa aproveitar como perspectiva de reflexão estética já no momento desta ficção por instaurar o marco zero da mesma: a ausência de faticidade da estética da fantasia futurista. Será exatamente do confronto teórico de sua filosofia desmitologizadora orientando a reflexão estética, por um lado, com essa fantasia futurista sobre o mundo administrado e a civilização técnica, por outro lado, fantasia esta igualmente desmagizadora a prolongar as linhas já existentes que, conforme o dissemos, Theodor W. Adorno tirará as categorias de análise ou quadros operativos da Crítica da Cultura.


O futurismo se deixa aproveitar como perspectiva de reflexão estética por instaurar o marco zero da ficção do futuro, a saber: a ausência de faticidade da estética da fantasia futurista.


Nada obstante, mais além da desmontagem da ideologia como sabedoria de frieza, no aproveitamento da fantasia futurista como perspectiva de reflexão estética devemos distinguir a desarticulação de certas idéias interligadas a tal construção fantástica que sucumbem igualmente à ideologia e cuja neutralização teórica se faz indispensável para pôr em relevo a cuidadosa qualidade daquela construção fantástica, tal como Theodor W. Adorno a examina ao integrá-la na utopia negativa. Dentre essas idéias a serem desarticuladas figura a “objetividade da satisfação”, preservada na postura que repele a “falsa necessidade” e que traz consigo a montagem de uma série de separações impostas em torno da esfera da satisfação das necessidades, na ânsia de estabelecer a todo o custo a distinção entre necessidades materiais e necessidades ideais. O equivoco desta montagem decorre da orientação idealista que, (a) – pretendendo repelir a neutralização da cultura separada do processo material de produção, tal como ocorre na cultura de massa com suas necessidades imaginárias, (b) – incorre em várias separações conexas na medida em que (c) – tenta colocar como correção uma esfera superior de cultura, (d) – agasalhando um conceito de “necessidade invariável”, em molde biológico e supra-histórico, (e) – compreendendo neste conceito a intensificação e o refinamento da consciência ou ampliação do conhecimento, na trilha da substituição da felicidade pelo Bem supremo. Por contra, mas na direção dessa aspiração à valorização da cultura, Theodor W. Adorno remarca, confirmando sua orientação crítica, que, estando toda a necessidade humana mediada em sua concreta manifestação, o aspecto estático das necessidades -- sua fixação na reprodução do Sempre Igual, bem como a interpenetração de “necessidade autêntica” e “necessidade falsa” -- é algo que corresponde a uma fase da produção material, a qual assumiu um caráter estacionário devido às restrições sobre o mercado e sobre a concorrência. No momento em que, prossegue Theodor W. Adorno, a produção se ponha ilimitadamente ao serviço da satisfação das necessidades, inclusive daquelas produzidas pelo sistema da indústria cultural, “as próprias necessidades se transformarão decisivamente” (...), “ficará claro um dia que os homens não necessitam das pequenas ilusões que lhes subministra a indústria cultural” (...); “a idéia de que o cinema, por exemplo, é necessário para a reprodução da força de trabalho ao mesmo título em que o é a habitação e a alimentação não é verdadeira senão em um mundo que dispõe os homens exclusivamente para a reprodução da força de trabalho e impõe sobre suas necessidades a harmonia com o interesse da oferta de produtos e com os controles racionais”. Segundo Theodor W. Adorno é um equívoco imaginar que, em uma nova sociedade, tal compulsão à satisfação das necessidades (isto é, tal necessidade de produzir para as necessidades harmonizadas) possa permanecer atuando em corrente. Portanto, é sobre esse espírito praticista impondo a adaptação das necessidades ou silenciando as necessidades ainda não satisfeitas pela sociedade como algo inútil que se faz a crítica, que se põe em relevo como não tendo sido questionado na fantasia futurista, em sua orientação idealista ao preservar a idéia da objetividade da satisfação.


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Segunda Parte


A desarticulação dos dispositivos ideológicos que Theodor W. Adorno empreende no seu ensaio crítico sob o “Admirável Mundo Novovi, tomado este como romance-fantasia sobre o mundo administrado da comunicação social, domínio do Sempre Igual, desenvolve duas linhas complementares da reflexão estético-sociológica. Torna-se claro que sem desarticular o ideológico dificilmente se perceberá que a Crítica da Cultura é atualizada pelo futurismo e no horizonte do futurismo. Portanto, a neutralização das alternativas obtida nessa desmontagem constitui um meio para contrarrestar e pôr em relevo as conexões da utopia negativa (a qual eterniza o Sempre Igual), quer essas conexões apontem os traçados para a nova sociedade ou apontando-os bloqueiem dela os caminhos. Como sabemos, uma das lacunas alimentando a utopia negativa se põe ao compor silenciando as necessidades ainda-não-satisfeitas pela sociedade como algo inútil. Nesse silenciar constata-se segundo Theodor W. Adorno o espírito praticista valorizado no mundo administrado da comunicação social e impondo a adaptação das necessidades ao interesse da oferta de produtos e aos controles racionais. Trata-se de uma compulsão à satisfação das necessidades que se faz ela mesma uma necessidade de produzir para as necessidades harmonizadas. Um dos focos da desarticulação do ideológico futurista é desmontar esse equívoco em imaginar que tal compulsão praticista possa permanecer atuando na nova sociedade. Ao compor silenciando as necessidades ainda-não-satisfeitas pela sociedade como algo inútil -e fincando pé na orientação idealista ao preservar a ideia equivocada de objetividade da satisfação- a fantasia futurista não-questiona o espírito praticista. Tal é a pegada dos dispositivos ideológicos. Seja como for, a confrontação do preservar dessa idéia equivocada de objetividade põe em relevo o procedimento de Theodor W. Adorno para tirar da fantasia futurista as categorias da Crítica da Cultura, em especial as configurações do imaginário da nova sociedade. Com efeito, ao mesmo tempo em que desarticula as separações conjugadas no ideal de uma esfera superior da cultura, Theodor W. Adorno deixa ver o seu procedimento por seleção diante da fantasia futurista. Tanto é assim que este autor porá de lado como sendo não inteiramente aproveitável, ou melhor, como residual na reflexão estético-sociológica as descrições que, por sua vez, ao invés de prolongarem pela imaginação da nova sociedade as linhas já existentes, servem apenas para eternizar certos aspectos do estado de coisas, ainda que estes figurem um contraste para a utopia negativa. Assim encontramos a censura de T.W. Adorno ao ideal da cultura que supera e hipostasia o espiritual em face da vida prática e da satisfação das necessidades, censurado por eternizar o estado da divisão do trabalho e da vida social e por desconsiderar que todo o espírito e todo o espiritual estão referidos à existência como ao seu cumprimento sendo implicitamente uma indicação para a vida prática. No dizer de Theodor W. Adorno, nem o sonho mais irreal deixou de compreender em si objetivamente a modificação da realidade material (...); nem emoção alguma nem interioridade alguma jamais houve que não significara em última instância exterioridade também (...); se lhes subtrai essa intenção por sublimada que seja espírito, emoção, interioridade se convertem em mera aparência e falsidade vii. Quer dizer, T.W. Adorno repele a imagem de que, por exemplo, a paixão shakespeareana de Romeu e Julieta com o esquecimento de si mesma que a caracteriza, possa ser tida como mero espetáculo da alma, como um valor de filosofia idealista, um em-si autárquico. Insiste que a alusão à união física dos corpos alí expressa significa ansiedade e neste sentido é realmente espiritualidade, pois que a noção de espírito por esta alusão está rebaixada de sua idealização. Mas a coisa não é assim tão simples. O procedimento por seleção desenvolvido por T.W. Adorno tem em vista sobretudo pôr em relevo as linhas de imaginação da nova sociedade, por mais paradoxais que possam parecer.



O problema da luta contra a

cultura de massa se equaciona pondo

em relevo a conexão que

existe entre a cultura massificada e a

função social de reconciliar os

homens com as más condições de

vida e de afastá-los da

crítica destas más condições,

função conservadora esta permitindo

que o mundo se fixe como cristalizado.



Lembra-nos esse autor, em acordo com Herbert Marcuse, que o progressivo domínio sobre a natureza e sobre a sociedade na civilização técnica elimina toda a transcendência, tanto a física quanto a psíquica. E prossegue: “a cultura em si mesma rótulo complexo de uma das faces da contradição, vive de não cumprimento, nostalgia, fé, esperança, em palavra única, vive do que não é, mas que se anuncia na realidade, ainda que a cultura assim viva de infelicidade” viii. Desta forma, por via da censura que acabamos de notar e para-além do confronto com a orientação de filosofia idealista, não surpreende que vejamos sobressair o vazio esteticamente relevante da fantasia futurista ao glorificar o cotidiano da vida por sua transcendência, sem notar como essa transcendência não descansa em si mesma, mas quer satisfazer-se. Tanto mais que neste glorificar apenas se projeta a ausência de emoção, o vazio da sexualidade fisiologicamente limitada que caracteriza o “Brave New World” como utopia negativa. Vazio de sexualidade este que portanto é relevante para a reflexão estético-sociológica porque tem alcance na desmagização da cultura, porque destrói o encanto do mundo, o qual não pode conservar-se por si mesmo. Segundo T.W. Adorno, se o caso é rejeitar a vileza, como parece ser no ideal superior de cultura, a mirada futurista se confunde ao atribuí-la ao predomínio da chamada cultura material sobre a espiritual ao invés de questionar o espírito praticista, pois que “o verdadeiramente digno de ataque seria a separação da consciência de sua relação social, do lugar em que conseguiria sua essência”, mas que idealisticamente a mirada futurista toma por separação instituída na sua própria filosofia eterna. A compreensão da sexualidade como conexão material do espiritual, designando o que é a espiritualidade em estado real, tal como vivida na ansiedade dos indivíduos, instaura o ponto de vista desde o qual T.W. Adorno desarticula a separação e a contraposição rígida do espiritual e da vida prática montada na ideologia do futurismo com seu ideal superior de cultura substituindo a felicidade pelo Bem supremo, como vimos. Deste ponto de vista da espiritualidade real, o problema da neutralização da cultura pela sociedade de capitalismo organizado, neutralização notada no desprezo pelos bens culturais da tradição como o teatro shakespeariano, não se resolve pela introdução de uma esfera superior. Esse problema da luta contra a cultura de massa se equaciona pondo em relevo a conexão que existe entre a cultura massificada e a função social de reconciliar os homens com as más condições de vida e de afastá-los da crítica destas más condições, função conservadora esta permitindo que o mundo se fixe como cristalizado ix. Em contra de A. Huxley, T.W. Adorno sustenta que a questão crítica sobre a cultura de massa não se reduz a censurá-la porque dê demasiado ao homem ou porque lhe torne a vida bastante segura; tampouco se reduz à afirmação como invariável da necessidade de intensificação e refinamento da consciência.


Na promessa humanista da civilização o humano inclui em si,junto com a contradição da coisificação, também a coisificação mesma.


T.W.Adorno se opõe ao posicionamento da visão futurista que constrói humanidade e coisificação em rígida contradição seguindo nisto o molde da tradição romanesca que tomou por objeto o conflito entre o homem vivo e as petrificadas circunstâncias. Essa orientação tal como observada no Brave New World desconhece a promessa humanista da civilização ao esquecer que o humano inclui em si, junto com a contradição da coisificação, também a coisificação mesma. Para T.W. Adorno essa qualidade da condição humana de incluir em si a coisificação mesma vale não somente como condição antitética da ruptura libertadora, mas vale também positivamente, como a forma mesmo frágil e insuficiente que realiza a moção subjetiva, que realiza a comoção do sujeito, seu abalo, mediante o exclusivo procedimento de objetivá-la, isto é: uma de-subjetivaçãox.

Daí sua censura ao futurismo por desconsiderar que o indivíduo com sua possessão ou personalidade já é produto da coisificação, posto que, por desconsiderar isto, o futurismo lança a coisificação como maldição sobre o futuro (sem penetrar acrescenta T.W. Adorno na presença dessa mesma instância, isto é, sem penetrar na benção do passado). Temos então que o ponto de vista da sexualidade como conexão material do espiritual introduz uma precisão de análise sobre o objeto da reflexão estético-sociológica, o qual por sua vez podemos destacar no ensaio de T.W. Adorno sobre Kafka ao explicitar o paralelo entre a atitude artística diante do sofrimento e a psicanálise xi. Nesse ensaio T.W. Adorno põe em relevo que a busca do marco zero do pensamento artístico caracterizando a instância em que este pensamento encontra seu material e pode então se exercer, mostra que este material por sua vez é fornecido pelos estados abalados que a sociedade evanescente causa aos homens e trata como desperdício.


A compreensão da sexualidade como conexão

material do espiritual designa o que é a

espiritualidade em estado real, tal

como vivida na ansiedade dos indivíduos, e

desarticula a contraposição rígida do

espiritual e da vida prática na ideologia do futurismo.


T.W. Adorno observa o seguinte: (a) – que as entidades psíquicas tomadas pela psicanálise em vista do desmascaramento do mundo aparencial, como o são os atos falhos, os sonhos e os sintomas neuróticos, são tomados por Kafka como “o lixo da realidade”, como os produtos do desperdício separados da sociedade evanescente exatamente pelo novo que se forma; (b) – que toda a grande arte domina a ascese diante do futuro sem todavia esboçar numa visão a imagem da sociedade nascente, mas efetua a montagem de tal imagem em fragmentos com os produtos do desperdício; (c) – que o artista ao arrancar a máscara que recobre o sofrimento submetido aos controles racionais, não se limita como o faz a psicologia a ficar junto ao sujeito, mas o artista penetra até o meramente existente detectado no fundo subjetivo com a caída da consciência ao perder toda a afirmação. Será exatamente esse meramente existente detectado com a caída da consciência que T.W. Adorno porá em relevo em sua análise da de-subjetivação levando à ataraxia como subjetividade estacionária na fantasia futurista (regressão da aspiração a valores no indivíduo.).


A Subjetividade da Utopia negativa e a supressão do mito.


Com efeito, a desarticulação da imagem ideológica projetada pelo futurismo ao tratar a coisificação como profecia, como uma maldição sobre o futuro, põe em evidência a redução de espírito e natureza ao nível neutralizado do que é “contrário absoluto da absoluta coisificação” e que norteia a configuração mesma da subjetividade estacionária na utopia negativa xii . Nota T.W. Adorno o entendimento diferente que o tema central da filosofia burguesa assume na fantasia futurista, pelo tratamento do culto do instrumento tomado como separado de toda a destinação objetiva, tratamento este levando à supressão do mito. Assim a unidade de natureza e espírito que foi concebida na especulação idealista como a suprema reconciliação desaparece na utopia negativa, notando-se em lugar disso que espírito e natureza se aliam contra a civilização tida idealizadamente como aquela que a tudo absorve e não admite nada que não lhe seja análogo. Quer dizer, a contraposição de espírito no sentido dos bens culturais da tradição, por um lado e, por outro lado a natureza como paisagem, isto é, imagem como criação-sem-dominar mais além da sociedade, termos esses dos quais se concebia em maneira mítica a suprema reconciliação, simplesmente desaparece e com isso o mito.


A cultura de massa organiza o tempo livre para fazer deste um

Standard do decoro infantil.


Segundo T.W. Adorno para chegar à subjetividade estacionária da utopia negativa é preciso considerar as concepções especulativas de espírito e de natureza que passam por redução, seguintes: (a) – que o espírito como espontânea e autônoma síntese da consciência só é possível na medida em que se encontra frente a algo não-abrangido, frente à natureza não previamente elaborada pelas categorias do conhecimento filosófico; (b) – que somente é possível a natureza na medida em que há espírito que se sabe contrário da coisificação e a transcende em vez de feitichizar-se sumindo nela xiii. O desaparecimento de ambos na utopia negativa é observado por T.W. Adorno na descrição do tipo de sujeito respectivo e na redução que este sujeito efetua levando os homens à impossibilidade absoluta de movimentos antes articulados, isto é, à ancilose. Inclui-se nesta categoria o sujeito da atração e da curiosidade em face do mar que contempla sentado desde seu automóvel ouvindo ao rádio canções publicitárias. Junte-se a esta sedução negada do mar a conduta que lança no sumidouro tudo o que não corresponde aos mais recentes métodos de produção, inclusive o passado, e teremos o esquema da subjetividade na utopia negativa, ou melhor, o esquema de uma de-subjetivação pura a que se identificam os sujeitos-objetos (a) – em sua incapacidade para perceber e pensar o que não é como eles mesmos; (b) - em sua auto-suficiência cega de sua própria existência; (c) – em sua imposição da pura utilidade subjetiva. Quer dizer, uma des-subjetivação identificando-se aos sujeitos-objetos do antiespírito universal assim realizado, produzidos cientificamente e limpos de todo o mito, mas que sublinha T.W. Adorno resultam infantis . Na fantasia futurista observa-se dessa maneira certas involuções já existentes no cotidiano da civilização técnica e da sociedade em regime avançado do capitalismo organizado que tendem a se converter em disposições com que a cultura de massa organiza o tempo livre para fazer deste um Standard do decoro infantil. Trata-se da substituição de todos os fins por meios levada a cabo a partir do que como vimos T.W. Adorno chamou culto do instrumento separado de todo o destino objetivo como por exemplo a religião do automóvel (implícita publicitariamente em outros tempos com FORD em vez de LORD e o signo do modelo T em lugar da cruz) incluindo a afecção fetichista em possuir perfeitos equipamentos de toda a natureza. T.W. Adorno sublinha que essa Standardização é o sedimento mesmo da fantasia futurista. Essa fantasia estende o princípio da desmagização do mundo ao absurdo tendo por motivação inicial a universal analogia de todo o produzido massivamente, coisas e homens. Aliás, nessa analogia de coisas e homens afirmada na produção em massa, T.W. Adorno redescobre uma equiparação com a metáfora schoppenhaueriana da fábrica da natureza preparando multidões de crianças em pares de gêmeos. Pesadelo de infinitos sósias, essa equiparação se estende até a produção da consciência standardizada de inúmeros homens pela communication industry : o mundo da fantasia futurista assenta-se na tríade “Community, Identity, Stability” xiv. Seus truques respectivos são: (a) – todo o indivíduo está incondicionalmente subordinado ao funcionamento do todo, com o “World Controller” operando no sentido de que seja impossível a alguém defrontar-se com uma questão problemática; (b) – as diferenças individuais têm sua anulação garantida pela Identity combinada à (c) – Stability, como o final de toda a dinâmica social. A panacéia que efetua essa garantia de estática social observada sociologicamente como Standardização é o Conditioning, significando a produção de determinados reflexos ou modos de comportamento por modificações planejadas no mundo circundante mediante o controle técnico das chamadas condições de vida, que a fantasia futurista estende como a total pré-formação do homem, desde a geração artificial dos embriões e a direção técnica da consciência e do inconsciente nos primeiros estágios da vida, até o “death conditioning”, isto é, um training que suprime das crianças o medo da morte com o procedimento de fazêlas contemplar agonias ao mesmo tempo em que se as faz degustar doces para que sempre associem a idéia de morte aos mesmos. Na utopia negativa desse mundo gerado no Conditioning T.W. Adorno põe em relevo o seguinte: (a) – que o efeito final do Conditioning como adaptação sobre si mesmo é a interiorização e a aprovação da pressão e da opressão sociais por cima da tradição protestante: “os homens se submetem a amar o que têm de fazer sem sequer saberem que isso é submissão” - assim se assegura subjetivamente sua felicidade e se preserva a ordem; (b) – que a penetração dessa ordem torna ultrapassadas todas as idéias de que a influência da sociedade no indivíduo seja uma influência mediada pela família doméstica e a psicologia; (c) – que, como filhos da sociedade no sentido mais literal, os homens coincidem substancialmente com ela, tornados dóceis expoentes da totalidade coletiva e estando condicionados socialmente, isto é, não simplesmente equiparados ao sistema dominante por um desenvolvimento posterior, mas numa relação eternizada em nível biológico. A interpretação de T.W. Adorno é de que a fantasia futurista indica que a reprodução da estupidez realizada antes inconscientemente no ditame da mera miséria vital, está nas mãos da triunfal cultura de massa, uma vez eliminada aquela miséria. De tal sorte que essa miséria como fixação racional da irracional relação de classes anuncia a superfluidade desta relação mesma, a superação de seu caráter natural como ilusão na história descontrolada da humanidade, ficando a subsistência de classes para a diferenciação administrativa na distribuição do produto social. Tal é a imagem da utopia negativa ao manter os embriões e as crianças pequenas das castas inferiores em uma atmosfera rarefeita em oxigênio , como se os mantivesse na mesma atmosfera dos bairros de barracos, só que construídos artificialmente. Todavia, T.W. Adorno observa que Aldous Huxley estende este complexo de impotência também na classe superior: a consciência daqueles que desfrutam sua própria individuação está submetida à Standardização por causa de sua identificação com o in-group, isto é, por uma sorte de identificação heteropática que, ao invés de levar aos conteúdos da consciência coletiva, levam aos juízos conditioning, estando o grupo constituído sobre a virtude de não-entender, sobre o vazio de significação (na reflexão estético-sociológica de T.W. Adorno o déjà vu se experimenta lá onde há ausência de significação).


A Standardização projetada na fantasia futurista valerá

como quadro operativo da Crítica da Cultura em T.W. Adorno

à medida em que dá contas do processus de restabelecimento da

corrente mítica como decadência da fala.


O novo tabu da utopia negativa decorre de que quanto mais se converte a existência social em ideologia de si mesma, tanto mais assinala como pecador àquele cujos pensamentos se sublevam ante a idéia de que o que existe é justo precisamente pelo fato de existir. Será dessa forma que a fantasia futurista se prestará à desarticulação ideológica, posto que a antimitológica obediência ao existente restabelece a corrente mítica. E T.W. Adorno a detecta não mais nas regras que proíbem uma conversação, mas na restrição imposta pela própria tendência objetiva afirmando a decadência da fala ela mesma. Ou seja, a Standardização projetada na fantasia futurista valerá como quadro operativo da Crítica da Cultura em T.W. Adorno na medida em que dá contas desse processus de restabelecimento da corrente mítica como decadência da fala. Com efeito, segundo nosso autor a transformação virtual do mundo em mercadorias; a decisão prévia sobre aquilo que se pensa e se faz realizada pela máquina social torna ilusória a fala. Esta é acometida de ancilose sob aquilo que no futurismo se chamaria “a maldição” do sempre igual, até reduzir-se a uma sucessão de juízos analíticos (no sentido do a-priori de Kant que reconduz a um intelecto arquétipo). Quer dizer, a conversação na utopia negativa se refere somente ao que já está previamente relacionado no catálogo da onipresente indústria. Tanto que T. W. Adorno classificará de faina vazia todo o diálogo que pretendera encontrar algo que não se soubera já: desprovido dessa idéia de que o diálogo leva a encontrar algo não já-conhecido, o próprio diálogo mostra-se maduro para desaparecer. A arcaica iloquacidade aparece então como a qualidade da comunhão dos perfeitos coletivizados que, nômades com voz, prescindiriam de toda a comunicação. Será a este estágio da arcaica iloquacidade que T.W. Adorno se referirá em seu ensaio sobre Kafka já mencionado em termos de o permanente déjà vu, o déjà vu de todos, finalidade oculta da arte de avant-garde do grande autor judeu-alemão: “a disponibilidade, a tecnificação e a coletivização do déjà vu (Cf.ib.pág. 269)”.






***





Terceira Parte


T.W. Adorno põe em relevo a conexão entre a ataraxia na

fantasia futurista e as tendências para certas involuções já

existentes no cotidiano das sociedades penetradas pela indústria

cultural e a cultura de massa


Deve-se levar em conta que a pesquisa sobre o material e a finalidade da arte não se esgota na descoberta do vazio de significação e desse aspecto do meramente existente que ali aflora no déjà vu. A Standardização através da des-subjetivação leva também à ataraxia cujo primeiro momento já mencionamos ao notar a ausência de emoção projetada na fantasia futurista. Isso porque a fantasia futurista glorifica o cotidiano da vida acentuando-lhe a transcendência, mas o faz deixando na sombra a conexão material do espiritual, a qual, apoiada no desejo, na busca de satisfação, na sexualidade vem a ser vivida como ansiedade pelos indivíduos humanos. Na verdade essa aparente desatenção para com a conexão material apenas desenvolve a imagem de apatia que a fantasia futurista tece ao estender a Standardização aos temas da felicidade e da sexualidade. Neste ponto, podemos ver que a pesquisa estética de T.W. Adorno aprofundando através da análise da fantasia futurista a reflexão sobre o material da arte e literatura de avant-garde, encaminha-se na direção que reencontra o pensamento artístico de Marcel Proust. Com efeito, é na obra desbravadora deste criador histórico, na série romanesca reunida em “A La Recherche du Temps Perdu” que o vazio de emoção configura um elemento fundamental, o foco mesmo das imagens e metáforas da narrativa literária. Tanto é assim que, em seu notável ensaio sobre Proust xv, Samuel Beckett insistirá no alcance neutralizador sobre a vontade e sobre a própria auto-afirmação da consciência desempenhado pelo monólogo interior prousteano, sobretudo no início do segundo volume de “Le Temps Retrouvé” em que, ao conseguir o vazio de emoção, o narrador tem acesso ao êxtase artístico e o vivencia mediante a intervenção da memória involuntária. Sem dúvida, a orientação freudiana (sem a psicanálise) de T.W. Adorno se distancia de Proust assim como a Libido não esgota o instinto do Eu. Não que o narrador prousteano seja menos neurótico (Beckett classificará o seu infantilismo como ligado ao complexo de dominação) do que os estados considerados por T.W. Adorno como elementares na criação poético-literária, mas sim que o pensamento de Proust vê a fonte da obra de arte na individualidade mesma do artista e em sua fantasia enquanto a Crítica da Cultura busca como já observamos nas significações culturais o foco irradiador das imagens e metáforas literárias. Assim T.W. Adorno põe em relevo a conexão entre a ataraxia na fantasia futurista e as tendências para certas involuções já existentes no cotidiano das sociedades penetradas pela indústria cultural e a cultura de massa, aliás, é essa conexão que orienta toda a sua Crítica da Cultura, como pesquisa sobre os materiais da arte e reflexão estético-sociológica sobre a utopia negativa. Com efeito, no prolongamento da Standardização pelo futurismo, a ataraxia, a impertubabilidade é produzida por extensão ao âmbito da relação da liberdade individual e dos tabus sexuais, notados estes no já mencionado culto do instrumento técnico separado de todo o destino objetivo e da afcção fetichista em possuir perfeitos equipamentos de toda a natureza. Segundo T.W. Adorno a função da ataraxia na utopia negativa rebaixa a idealização do meramente existente, ou melhor, da existência monádica ou atomizada dos indivíduos, dando expressão à relação complementaria que existe entre coletivização e atomização. Assim o núcleo de toda a relação entre seres humanos é amarrado por essa ataraxia ao êxtase sexual. Quer dizer, há na utopia negativa contradição envolvendo uma liberdade (neutralizada em vazio de emoção) na qual os tabus sexuais perdem sua força e são substituídos pela autorização do antes proibido, ou se fixam em maneira vã por uma estéril constrição. O prazer mesmo degenera em miserável galhofa e em mera ocasião de narcisista satisfação por ter fisgado a esta ou àquele (...); o sexo se faz indiferente e irrelevante pela institucionalização da promiscuidade (...); se deseja a descarga fisiológica como elemento de higiene e a carga emocional que isso pode representar se deposita em conta do desperdício de energia sem utilidade social; o que há de evitar a todo o custo é deixar-se levar pela emoção. Tal a contradição em que desponta a ataraxia, a impertubabilidade como vazio de sexualidade ou de emoção, que T.W. Adorno analisará como construção do orgasmo organizado na fantasia futurista xvi. Segundo T.W. Adorno, no exame dessa contradição deve-se distinguir na fantasia futurista a vertente marcada pelo puritanismo, que acolhe e elabora como inseparáveis o sentido religioso por um lado e, por outro lado a humilhação do sexo e a entrega sexual, e que se poderá detectar na cena romanesca do Brave New World. Assim encontra-se mais arraigado o dispositivo ideológico tornando localizado e restrito o assunto sobre sexo, o qual fora equivalente ao tema da libertinagem considerada como estímulo fisiológico à maneira em que nas chamadas culturas masculinas, os cavaleiros costumavam falar entre eles de mulheres e de erótica mesclando (a) – orgulho por terem conquistado soberania para tocar no tema tabu e, (b) – desprezo por este tema. No romance de Aldous Huxley -prossegue T.W. Adorno em sua análise- este dispositivo ideológico e o próprio fato do sexo está mais sublimado e mais profundamente reprimido, sendo notado na questão da falsa felicidade, que sacrifica a idéia de felicidade verdadeira. Tanto mais que nesta vertente derivada do puritanismo a objeção anteposta à “era industrial” é sobretudo o relaxamento dos costumes e não tanto a desumanização. A indagação principal é saber se não há felicidade possível senão na medida em que há proibições a destruir - como se a felicidade dimanante da violação de um tabu pudera justificar e legitimar o tabu mesmo, ironiza T.W. Adorno xvii. Por contra, T.W. Adorno põe em relevo a inoperância dessa ideologia influindo na fantasia futurista ao fazer sobressair que o rápido e prescrito câmbio de companhia erótica na utopia negativa deriva da cega e oficial organização do sexo, que converte o prazer em broma e o nega ao concedê-lo. Ou seja, é o tabu mesmo que continua vigorando na impossibilidade de mirar cara a cara o prazer, de entregar-se plenamente a ele por meio da reflexão. Se esta proibição houvera sido quebrada, se o prazer se tivera liberado já das malhas da instituição seria capaz de dissolver a rigidez do The Brave New World como mundo da utopia negativa. Segundo T.W. Adorno o princípio moral supremo desse mundo pintado na fantasia futurista é de que qualquer um pertence a qualquer um, é a fungilidade absoluta que dissolve o homem como ser individual a qual destrói, então, como mera mitologia o último Em-Si do homem, seu último tabu e o determina como mero Para-Outro, como nulo. Prosseguindo na desmontagem desse dispositivo ideológico, sublinha nosso autor que essa situação de anarquia sexual é todavia incompatível com uma ordem totalitária, posto que o conceito de domínio pode definir-se como a disposição de uns sobre os demais e não como disposição total de todos sobre todos. O homem que não é mais senão para outra coisa ficaria sem dúvida alienado de sua mesmidade, porém seria também liberado da atadura da autoconservação que mantém unido o mundo da utopia negativa tanto quanto o mundo velho. Segundo T.W. Adorno a pura fungibilidade corroeria o núcleo do poder e prometeria a liberdade em sentido absoluto. Dessa maneira sobressai a debilidade da concepção de conjunto que vincula o futurismo por um lado e, por outro lado, a ideologia derivada do puritanismo, e que vincula a ambos com o princípio moral da fungibilidade absoluta na utopia negativa; fragilidade composicional esta que T.W. Adorno examinará partindo da cena principal do romance da fantasia futurista de Aldous Huxley, a saber: o choque erótico dos dois mundos: o da personagem Lenina - que é o protótipo da mulher americana liberada - e o do “selvagem John” - que a ama em modo lírico e puramente contemplativo e que pertence ao mundo que ficou às costas da cultura absoluta de massa como uma relíquia do humano (mundo esse que, ademais, é pintado nessa fantasia como repugnante e deformado, à imagem das colônias nudistas em que o sexo se anula também mediante sua desocultação). Com efeito, a análise pela Crítica da Cultura diz-nos que a cena romanesca do The Brave New World mostra a tentativa da protagonista Lenina em conquistar o selvagem John segundo as regras da imposta promiscuidade. T.W. Adorno põe em relevo os desencontros na composição romanesca seguintes: (a) – o fracasso da figuração da ataraxia nessa tentativa, posto que o dirigir-se contra Eros, o pretendido efeito antierótico que o autor Huxley almeja alcançar com a pintura da graça artificial e da desvergonha de Lenina resultam pelo contrário enormemente atrativos, ao ponto que o próprio colérico “selvagem” sucumbe à graça dela no final da novela; (b) – que, ao identificar-se no fundo os gestos de Lenina com a convenção (cada um dos seus gestos está pré-formado socialmente) se suprime a tensão do convencional com a natureza desarticulando a imagem terrível do The Brave New World como utopia negativa e, em conseqüência (c) – se suprimiria igualmente a violência exercida pela injustiça da convenção ruim, que é sempre signo de uma identificação insuficiente ou malograda; (d) – se este fosse o caso do The Brave New World como utopia negativa, resultaria superado o conceito mesmo de convenção nesta utopia; (e) - portanto, e em razão desta total mediação social, se restabeleceria de fora para dentro uma segunda imediatez, uma nova humanidade, da qual T.W. Adorno afirma não faltarem indícios na civilização americana; (f) – teríamos ainda que a explosão do “Selvagem” contra a amada, não aceitando sua desvergonha e a insultando por isso, não resulta como pretendia Huxley em um protesto da pura natureza humana contra a fria desvergonha em moda, mas, desde o ponto de vista do que T.W. Adorno chama justiça poética, no caso a de Huxley como artista para com seu próprio personagem e apesar do próprio Huxley como autor, resulta, sim, uma agressão de um neurótico, do qual Freud teria demonstrado no dizer de T.W. Adorno a motivação como homossexualidade reprimida e o ato de insultar contra a amada, por sua vez, resulta como conduta do hipócrita que treme de cólera santa contra aquilo que ele não pode fazer.


Há na utopia negativa contradição envolvendo uma liberdade (neutralizada em vazio de emoção) na qual os tabus sexuais perdem sua força e são substituídos pela autorização do antes proibido, ou se fixam em maneira vã por uma estéril constrição.


Finalmente, T.W. Adorno classifica como distanciamento da crítica social a esta fragilidade composicional da concepção de conjunto que vincula como dissemos o futurismo por um lado e, por outro lado a ideologia derivada do puritanismo, e que vincula a ambos com o princípio moral da fungibilidade absoluta na utopia negativa.


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A busca da individuação na composição literária de avant-garde

deve levar em conta a coisificação não somente como condição da

ruptura libertadora, condição negativa, mas como a forma

positiva que torna objetivo o trauma subjetivo, como o caráter de

mercadoria assumido pela relação entre os homens.


Podemos então ver neste ponto que a crítica social tem um alcance maior do que é exigido pela incipiente forma romanesca composta em fantasia futurista. Esta como mencionada é limitada segundo T.W. Adorno ao modelo da tradição do romance que vem do século XVIII, desde o Iluminismo, tendo por objeto o conflito entre o homem vivo e as petrificadas relações sociais. Na verdade, ao pôr em relevo a indispensabilidade em figurar a justiça poética, evitando colocar os personagens em injustiça pelo não reconhecimento ou pela descaracterização do perfil neurótico desempenhado, T.W. Adorno acentua a crítica social não só como ponto de vista aproximadamente freudiano sobre a busca da individuação, inspirando esta busca à utopia negativa, porém nosso autor vai mais longe e equipara a crítica social ao conhecimento de que a promessa humanista da civilização afirma o humano como incluindo em si juntamente com a contradição da coisificação também a coisificação mesma. Quer dizer, a busca da individuação na composição literária de avant-garde deve levar em conta a coisificação não somente como condição da ruptura libertadora, condição negativa, mas como a forma positiva que torna objetivo o trauma subjetivo, como o caráter de mercadoria assumido pela relação entre os homens: uma relação que se esqueceu de si mesma. Nesse caráter de mercadoria a busca da individuação passa pela forma reflexa afirmando a falsa consciência que o homem tem de si mesmo e que é decorrente dos seus fundamentos econômicos. Do ponto de vista da Crítica da Cultura, essa falsa consciência configura por sua vez o homem coisificado não somente como uma realidade crítico-teórica, mas dá-lhe expressão como um homem obnubilado diante de si mesmo. Daí, finalmente, desse estado patético procede a figura recorrente na literatura de avant-garde do personagem neurótico como afirmação da individuação buscada no contexto da Standardização e da indústria cultural, o personagem com alcance crítico e por isso com valor artístico positivo. De fato, se a justiça poética é uma noção reflexiva aplicável à utopia negativa como tema configurando o campo da arte e literatura de avant-garde e se vale para designar o modo pelo qual o autor, como artista, deve observar e aplicar a forma de objetivação na composição dos personagens, isto é, sua assimilação ou seu distanciamento para com a crítica social, então temos que a atitude efetiva assumida em face desse modo composicional ou dessa crítica social leva a distinguir um momento positivo e um momento negativo interpenetrados na utopia negativa. É o que T.W. Adorno nos sugere e suas análises esclarecem. Assim sobressai a apreciação dos limites da fantasia futurista elaborada no marco da concepção composicional distanciada da crítica social. Entretanto, nota-se logo de início que a crítica social não se exerce independentemente de sua contrapartida na ideologia derivada do puritanismo, que restringe a objeção à “Era Industrial” somente ao nível do relaxamento dos costumes desconsiderando a desumanização. Tanto é assim que a crítica social só é afirmada segundo T.W. Adorno pela inoperância composicional dessa ideologia, como vimos. Trata-se do procedimento pelo qual se aprofunda na utopia negativa em face do mundo que a fantasia futurista pintou como pertencendo à própria utopia negativa, mas que, assim fazendo, lhe impôs uma rigidez equiparável ao princípio de unidade do velho mundo. Quer dizer, a crítica social em sua funcionalidade utópica só se exerce na medida em que leva a ultrapassar a fixação da contradição humanidade versus coisificação na configuração do mundo da utopia negativa como um mundo rígido. Na análise de T.W. Adorno o distanciamento para com a crítica social não deixa perceber a extensão do princípio moral supremo do mundo da utopia negativa, a extensão da fungibilidade absoluta como levando à complementaridade da libertação e da auto-alienação – tomada esta última como tendência estrutural-histórica (consciência alienada). Mas não é tudo. O distanciamento da crítica social não deixa perceber o homem que não é mais do que um ser para outra coisa; não deixa perceber que esse homem da fungibilidade ficaria sem dúvida alienado de sua mesmidade, porém seria também liberado da atadura da auto-conservação como princípio dos controles racionais. A função utópica da crítica social é então bem destacada nessa orientação adorniana para ultrapassar a rigidez do mundo da utopia negativa já que é por meio dessa rigidez que o mundo da utopia negativa não é ainda capaz de superar o mundo velho. A dualidade se instaura à medida que o distanciamento para com a crítica social é integrante da utopia negativa e acentua a ambivalência dessa qualidade negativa, acentua o momento que nega o mundo velho, mas se limita nesse negativo e não chega ao novo. Tal será o teor da análise que T.W. Adorno nos oferece sobre os limites da fantasia futurista manifestos na mencionada alternativa falsa entre a barbárie da felicidade (sob a Standardização) por um lado e, por outro lado a cultura como estágio objetivamente superior e que inclui em si a infelicidade – falsa por tratar-se de uma alternativa inconciliável apresentada na fantasia como angustiante pesadelo fazendo com que os personagens postos ante a exigência de decidir entre um e outro sejam acometidos de alienação mental subjetiva (no sentido psiquiátrico do termo como delírio em face da realidade). Sem dúvida, a utopia negativa de que nos fala T.W. Adorno não é somente o tema da reflexão estético-sociológica, mas configura o campo da literatura e arte de avant-garde, o âmbito da realidade coisista de onde elas tiram o seu material e encontram sua finalidade. A reflexão estéticosociológica não se exerce somente sobre a literatura e a arte, mas toma parte nelas, é integrante, faz à sua maneira literatura e arte de avant-garde à medida em que a literatura e arte de avant-garde exercem à maneira delas a reflexão estéticosociológica exatamente por encontrarem o seu material e sua finalidade na utopia negativa. A Crítica da Cultura que T.W. Adorno põe em obra como “disciplina” de reflexão estético-sociológica atende a esta característica dialética. Assim podemos distinguir em resumo os vários níveis da Standardização como categorias de análise ou quadros sociológicos operativos da Crítica da Cultura alcançando o tipo especial de fenômeno social-histórico ligado à relação de comunicação social e observado nas sociedades sob regime de capitalismo organizado, lá onde prevalece a indústria cultural e a cultura de massa, seguintes: I) – Níveis diferenciados em estado negativo: (a) – a consciência standardizada: compreende a produção do Sempre Igual, em três níveis ou momentos combináveis: a Community, a Identity, a Stability; (b) – o processus de des-subjetivação pura: compreende o desaparecimento dacontraposição espírito-natureza, em três momentos: (b1) – o culto do instrumento separado de todo o destino objetivo; (b2) – a afecção fetichista em possuir equipamentos perfeitos de toda a espécie como norma de vida; (b3) – o processus de totalização da mediação social gerando os indícios do restabelecimento de uma segunda imediatez. II) – Níveis Críticos: (a) – a crítica social; (a1) – se rebela contra o próprio Conditioning; (a2) – sua consciência supera às vezes o sistema social exatamente por serem os críticos perseguidos como gente não totalmente adaptada; (a3) – está contemplada negativamente na política cultural burguesa; (a4) - à medida que esta, em nome de uma concepção que contempla e pesa a totalidade, primeiro: sempre tem desmascarado como filho autêntico do todo contra o qual se resiste àquele que quer cambiá-lo; segundo: sempre tem insistido que a verdade está sempre com o todo, seja contra aquele que lhe resiste, seja através dele mesmo; (b) – a ultrapassagem da separação entre o espiritual e o material, (b1) – levando a superar igualmente a identificação do anímico com um em-si autárquico tido por algo como um valor de filosofia idealista; (b2) – levando também a observar a reprodução do Sempre Igual em correspondência com a restrição da concorrência na produção material; (c) – o ponto de vista prospectivo na esfera da satisfação das necessidades levando a sobressair a fixação da estática social assumida pelas necessidades na reprodução do Sempre Igual; (d) – a análise crítica do conformismo no âmbito da utopia negativa, (d1) – como o lado mental subjetivo da Standardização compreendendo a constrição ideológica da vida mental dos indivíduos por efeito da tendência estrutural objetiva à auto-alienação e fazendo ver a inconciliabilidade da literatura e arte de avant-garde (busca da individuação) com a reprodução em massa.

Jacob (J.) Lumier




FUTURISMO E UTOPIA NEGATIVA NA CRÍTICA DA CULTURA:

Elaboração inicial para ler um texto de Theodor W. Adorno.


NOTAS DE FIM


i Cf. Adorno, Theodor W.: “Prismas: la Critica de la Cultura y la Sociedad”, tradução de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962, 292 pp. (Traduzido do original em Alemão: Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft. Berlin, Frankfurt A.M. 1955). Cf. em especial o ensaio “Aldous Huxley y la Utopia”, páginas 99 a 125.

ii Aldous Huxley: “The Brave new World”, apud Adorno, Theodor W.: “Prismas: la Critica de la Cultura y la Sociedad”, tradução de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962, 292 pp. (Traduzido do original em Alemão: Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft. Berlin, Frankfurt A.M. 1955). Cf. em especial o ensaio “Aldous Huxley y la Utopia”, páginas 99 a 125. Op. Cit.

iii Um futuro onde o Sempre Igual se prolonga indefinidamente é compreendido como Utopia Negativa.


iv Note-se que, por ser de ordem prático-coletiva, a humanidade não pode ser regulada por prioridades ontológicas.


v Como se sabe a noção de iliberdade é utilizada na referência da filosofia de Kant para dar conta da não-incompatibilidade da sua doutrina identitária do Direito em face da coação - <O Direito é o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de uma pessoa pode ser acordado com o arbítrio de outra pessoa segundo uma lei universal de liberdade>. A Iliberdade equivaleria à invasão no espaço de outrem (coação) por oposição/complementação da liberdade como esfera da permissão. Ver Power Point Slide 17: Kant e o Direito www.ucb.br/relinter/download/Norberto%20Bobbio.ppt Pesquisado em 11 de Fevereiro de 2007.


vi Aldous Huxley: “The Brave new World”, apud Adorno, Theodor W. : “Prismas: la Critica de la Cultura y la Sociedad”, tradução de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962, 292 pp. (Traduzido do original em Alemão: Prismen. Kulturkritik und Gesellschaft. Berlin, Frankfurt A.M. 1955). Ver em especial o ensaio “Aldous Huxley y la Utopia”, páginas 99 a 125. Op.Cit.


vii Adorno, Theodor W.: “Prismas: la Critica de la Cultura y la Sociedad”, tradução de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962, 292 pp. Ver o ensaio “Aldous Huxley y la Utopia”, em especial a pág.113. Op.Cit.


viii Adorno, T.W. op.cit, p.118.


ix ib.p.114.


x cf.ib.p.110.


xi Ib. Ibidem, págs. 268, 269.


xii Cf. Ib, pág. 105.


xiii Cf. Ib., págs. 105,106


xiv Cf. Ib, pág. 102


xv Beckett, Samuel: “Proust”, Londres, Evergreen Books, 1931.


xvi Adorno, Theodor W.: “Prismas: la Critica de la Cultura y la Sociedad”, tradução de Manuel Sacristán, Barcelona, Ariel, 1962, 292 pp. Op. Cit. Cf. págs. 106, 107.


xvii cf.ib.pág. 108.


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