• Milenarismo e Insurgᅢᆰncia

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Reflexão e Crítica

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 Milenarismo e Insurgência:

Fragmentos para a Leitura de Ernst Bloch.

 

Por

Jacob (J.) Lumier

 

 

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Rio de Janeiro, 04 de Dezembro de 2008

 

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Etiquetas: dialética, utopias sociais, milenarismo, insurgências camponesas, mundo moderno, ambiência tradicional, heresias cristãs, Alemanha, superestrutura, modernização.

 

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"Abstract"

 

Como se sabe, devido ao seu caráter não-representacional, a reflexão histórico-filosófica é vista como sendo distanciada em relação às questões prementes, embora seja situada na realidade social.

A leitura de Ernst Bloch é interessante por que nos mostra a dimensão humana universal que está por trás dos movimentos camponeses na história do mundo moderno.

Esse autor examina como milenarismo o fenômeno coletivo da ambiência tradicional que muitos autores de sociologia estudiosos do espírito do capitalismo limitaram-se a abordar pelo aspecto mais exterior e particular no messianismo (para Max Weber trata-se de um aspecto das exaltações carismáticas).

    Sua análise concreta põe em relevo que o legado do passado dentro do processus histórico como matéria das contradições contemporâneas não pode ser adequadamente contemplado caso o enfoque seja limitado ao capitalismo como ao presente em seu estágio último.

A matéria das contradições contemporâneas não é somente a matéria das forças produtivas muito presentes ou desencadeadas com a modernização, mas é também a negatividade extrema de tal situação: é o homem ou o proletário alienado, é o trabalho alienado, é o fetiche da mercadoria, em suma é a inconsistência do nada, do vazio. 

Diz-nos que esse elemento positivo se encontra no interior da contradição contemporânea e de sua matéria, no interior das negatividades reificadas e se apresenta sob a forma de alguma coisa que falta, em fato, como a aspiração ao homem completo, ao trabalho não alienado, ao paraíso terrestre.

Há, pois, que distinguir na análise do tradicional, como positividade, outra matéria diferenciada: a matéria de uma contradição que se rebela a partir de forças produtivas absolutamente não-desencadeadas: que se rebela a partir de conteúdos intencionais de uma espécie que permanece sempre não-contemporânea.

Daí sua insistência na importância da idéia milenarista, examinada como heresia cristã para a compreensão de uma grande revolução social como a do século XVI no ambiente tradicional agrário mais ancorado no medievo (o Gótico Tardio).

Seja como for, a qualidade que diferencia a reflexão crítico-histórica de Ernst Bloch são os seus procedimentos para colocar em perspectiva no estudo do Gótico Tardio e das insurgências camponesas o legado da profundidade do sentimento. 

 

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Preâmbulo:

A Fenomenologia Concreta de Ernst Bloch

 

 

 

Embora seja estudado em ligação com as conhecidas correntes intelectuais do Século Vinte influenciadas por dogmas materialistas, Ernst Bloch é um dos pioneiros da relativização da dialética na crítica-histórica e desenvolve em sua obra a compreensão da totalidade múltipla, ou seja: a totalidade com vários níveis de realidade histórica ou de passado.

 

 

►No artigo "História e Consciência Coletiva na Modernização Acelerada dos Anos Vinte: Pré-capitalismo e Crítica da Cultura Tradicional do ponto de vista das regiões mais vinculadas ao medievo", publicado na Page anterior, a descoberta de uma problemática fenomenológica na crítica do processus histórico do mundo moderno é assinalada como orientação de Ernst Bloch em suas análises da crise dos anos vinte na Alemanha (o psiquismo coletivo dos "de baixo" como relacionada à figura do pequeno homem).

Dentre os vários aspectos que corroboram uma fenomenologia, assinala-se que a burguesia declinante exprime o vazio de um mundo seu preenchido pelas coincidências de uma história dos fenômenos.

Quer dizer, tomando em consideração o conjunto dessas coincidências Ernst Bloch observará tratar-se de um tempo em ausência de intenção, tendo relevo a relativização das coerências, não como um fim, mas no sentido de uma fenomenologia em caminho, em vias de se fazer como reencontro estranho da antiga cultura (gótico tardio) e do individualismo.

Isto porque, em um tempo em ausência de intenção, a atividade onírica in-dormida pode ser verificada e descrita em maneira objetiva, revelando-se mais acessível à crítica-histórica do tradicional na modernização, de tal sorte que a análise caminha para a fenomenologia concreta.

Os sonhos passados compreendidos no sentido de atividade onírica in-dormida se associam na juventude à inquietação orgânica, em maneira propícia aos movimentos de exaltação personalista, como eram aqueles movimentos alheios à modernização compostos pela montage na burguesia.

Em sua obra “Le Príncipe Espérance”, a função utópica é estabelecida no conhecimento filosófico como pulsão imprescindível à auto-conservação, sendo a partir dessa compreensão que Ernst Bloch a classificará na extensão do desejo de ser melhor aquinhoado.

Por sua vez, em virtude de sua natureza gestante, o desejo de ser melhor aquinhoado jamais se completa, é permanente em sua não-complementação, restando em fato e necessariamente irrealizado no estado de atenção, base fenomenológica de toda a comunicação existencial. 

Desta forma, haverá que distinguir em paralelo às imagens simbólicas ideais em que a sociologia estuda a moralidade ideológica, aquelas outras que, ultrapassando-as, devem ser compreendidas como imagens-aspiração: o herói cavaleiresco, as formas góticas dos mobiliários, solares e mansões rústicas, por exemplo.

Nestas se incluem as imagens formadas de sonhos passados, as imagens diferenciadamente formadas pelo elemento onírico da arte que integram o ideal estético realista ou entelequial, sendo exatamente os sonhos passados que segregam o critério para a não-contemporaneidade

Acresce que as formas passadas ou pré-capitalistas jamais tornaram em fatos realizados os conteúdos visados do solar, do solo, dos "de baixo", de sorte que esses focos do tradicional na cultura já guardam desde o começo a qualidade de intenções insatisfeitas.

 Além disso, notando que estas intenções insatisfeitas passam ao longo da história por contradições veladas, Ernst Bloch as examinará desde a colocação em perspectiva filosófica, para além da psicologia representacional, tratando-as como conteúdos intencionais não ainda trazidos à luz do passado na realidade da cultura, o que o levará a definir o campo estético em eficácia como o concretamente utópico [i].

 

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A montage na burguesia declinante exprime o vazio do mundo dela preenchido pelas coincidências de uma história dos fenômenos, uma fenomenologia que certamente não é a boa, mas que no caso limite pode servir de alavanca para a boa prestando também uma maneira de assegurar a antiga cultura [ii] . Portanto, a ausência de intenção deve ser entendida no sentido dessa fenomenologia em caminho, em vias de se fazer como reencontro estranho da antiga cultura e do individualismo.

 

►Na fenomenologia de Ernst Bloch, que é histórico-filosófica, a redução dos juízos prévios ou da função representacional da consciência leva não a uma intencionalidade lógico-existencial, como a “intencionalidade funcional” de Husserl: a primeira e primordial afirmação de significado. 

A fenomenologia concreta leva sim a um elemento postulativo, originário, na raiz de todo o conteúdo de civilização, que, entretanto, se descobre não como experiência originária do pensamento "puro", mas em estado de realidade aberta (realidade estética), a partir de seu núcleo ativo: o "dator formarum" como atitude ascética, que a história da filosofia está em medida de comprovar justamente porque é a experiência humana originária do pensamento histórico "puro", bem reconhecido na estrutura gradual [iii].

Desta forma, não nos parece haver dúvida quanto à vinculação fenomenológica do "materialismo" entre aspas de Ernst Bloch.

Embora tenha raízes em Marx, sua filosofia ultrapassa o marxismo: é impossível encontrar em sua obra o menor rastro de uma antropologia à maneira de Engels.  Isto significa que o paralelo é feito com a sociologia.

►Com efeito, na sociologia, o materialismo e o espiritualismo não passam de abstrações do esforço humano.

Deve-se notar a distinção de Marx entre consciência real ou imanente à vida social e consciência mistificada ou ideológica – domínio dos preconceitos filosóficos inconscientes.

 À semelhança das obras de civilização, a consciência faz parte das forças produtivas em sentido lato e desempenha um papel constitutivo, seja como linguagem, seja pela intervenção do conhecimento, seja ainda como direito espontâneo, nos próprios quadros sociais.

Como se sabe, esses quadros sociais são chamados por Marx de “modos de ação comum” ou modos de colaboração ou relações sociais, nos quais se incluem as manifestações da sociabilidade, os agrupamentos particulares, as classes sociais e as sociedades.

O significativo aqui, do ponto de vista do alcance determinístico da sociologia, é que esses quadros sociais exercem um domínio, um envolvimento, sobre a produção material e espiritual que se manifesta no seu seio, domínio esse, por sua vez, que é exatamente o que se prova nas correlações funcionais.

Quanto às ideologias, ficam excluídas das forças coletivas ou produtivas por representarem uma “mistificação”, ou seja, oferecem um aspecto da alienação: a alienação do conhecimento desrealizado e perdido nas projeções para fora, que inclui as “falsas representações” em que os homens e as suas condições surgem invertidos, como numa câmara escura, que é um aspecto da teoria do fetichismo da mercadoria em Marx.

Na dialética dos níveis de realidade social, os quadros sociais e a consciência real são produtos das forças produtivas strictu-sensus – isto é podem ficar objetivados – mas, sob outro aspecto, são igualmente os seus produtores e assim se afirmam como elementos reais da vida social. Essa dialética dos níveis em Marx é tanto mais saliente quanto mais observadas forem as forças produtivas ou forças coletivas, não como fatores isolados, mas como a causa social total.

Quer dizer, o conceito de forças produtivas fica então compreendido no sentido de extensão máxima identificando-se ao conjunto dos níveis ou dos graus da realidade social.

Portanto, não há negar que a compreensão da realidade social e da sociologia que a estuda é bem defina em Marx, e reúne várias formulações enfatizando a ultrapassagem do dualismo (espiritualismo/materialismo) como levando ao coeficiente existencial e ao coeficiente humano do conhecimento.

Assim, em Marx, é no domínio da realidade social que “pensar e ser são simultaneamente diferentes e um só” ("Manuscrites de 1844", trad. Molitor, vol. VI, p.28); que a velha oposição entre espiritualismo e materialismo foi por todo o lado posta de parte” (“La Sainte Famille”, Molitor, Vol.II,p.167); que “o subjetivismo e o objetivismo, o espiritualismo e o materialismo, a atividade e a passividade perdem a sua oposição e, por conseqüência, a sua existência”(Manuscritos, ib.p.33).

Em suma, para Marx, a ultrapassagem do dualismo das ciências naturais e das ciências humanas não deve ser procurada na absorção das ciências humanas pelas ciências naturais, mas na “constatação de que qualquer ciência é uma atividade social prática e, portanto, comporta um coeficiente humano” – notando que é este o posicionamento e a formulação de Marx nas “Teses sobre Feuerbach" [35:p.286]. 

 

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►Quanto à superação da oposição entre materialismo e espiritualismo na fenomenologia existencial passa a mesma pela crítica ao tomismo.

Com efeito, ao sustentar uma “verdade em si” como distinta da verdade como "posse humana", o tomismo é tido por um “realismo representacional”. Quer dizer, o tomismo “não considerava a objetividade como termo encontrado pelo sujeito cognoscente, mas como “em si”, como realidade isolada do sujeito, supondo desta sorte, que, no conhecimento verdadeiro, este “em si” se repercutia exatamente no sujeito”. [55: p.108 sq, p.111 sq, p.130-134].

A crítica ao tomismo se opõe à pintura da realidade como se esta fosse uma coleção de essências acumuladas em uma terra que nem sequer necessitava ser descoberta para ter significado; portanto, a crítica contesta a fixação do “universo da realidade” (ominitudo realitatis) como paisagem ordenada e hierarquizada na qual até “as essências das ações do homem se imbricam”, dizendo-se de tais atos, em suas essências, que “eram o que são, necessária, universal, imutável e eternamente verdadeiros em si mesmos” - posicionamento este que identificava o realismo representacional como um ponto de vista divino sobre as coisas e de difícil aceitação pelo homem contemporâneo.

Por contra, os defensores da fenomenologia existencial sustentam que “qualquer descrição real da realidade objetiva pressupõe o “descobrimento” desta realidade mediante a “luz” da subjetividade”. Em teoria, esse “descobrimento” é um acontecimento que se pode situar no tempo e que tem um futuro. É a historicidade do sujeito.

A verdade como posse humana comporta riscos, já que o sujeito, se ele “comparte da verdade como desocultamento”, ele não se limita a ser sujeito existente passivo (“ego cogito”), mas pode adjudicar às coisas toda a classe de significações, pois “pensa que as vê”.

Assim entramos na “doutrina do homem como existência” e notamos que quem está no primeiro plano da ordem do conhecimento é o sujeito sumido no mundo vivido como complexo de significações, e esta elevação é descoberta através de uma Gestalt ou configuração em atitude – a que a fenomenologia existencial refere “a experiência original do mundo da vida”, fundamento da experiência científica à medida que esta é um “retornar e esse mundo anterior ao conhecimento”.

O complexo de significações dentro do qual está imbricado o sujeito não é um ato apenas mental, mas é “o próprio ser do homem como existência”, ao qual Husserl chamará “intencionalidade funcional” ou “vida que experimenta o mundo”, a primeira e primordial afirmação de significado.

Nessa afirmação em que o sujeito é o “reconhecimento da autonomia do significado”, o fenomenólogo se distancia tanto do materialismo como do espiritualismo.

Quer dizer, “a fenomenologia existencial define o homem como sujeito, porém sujeito que se encontra imerso em coisas materiais”, de tal sorte que “as coisas mundanas co-determinam o que é o homem”. Em conseqüência, não se pode deixar o mundo à margem do pensamento sem que se elimine o próprio homem e, reciprocamente, estando as coisas materiais sinalizando para o sujeito, ao deixar-se esse sujeito à margem do pensamento, se eliminam também do pensamento tanto a todos os significados como ao próprio homem. 

 

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►Sem dúvida, os primeiros críticos do existencialismo como Herbert Marcuse [57: p.37 sq] aceitaram que o sentido do existencialismo filosófico era recuperar em face do sujeito lógico e abstrato do idealismo racional a concretude plena do sujeito histórico, quer dizer suprimir o domínio incomovível do “ego cogito” que se estende desde Descartes até Husserl.

“A posição de Martim Heidegger até sua obra “Ser e Tempo” dá testemunho da linha mais avançada da filosofia nesta direção”.

A análise critica de Herbert Marcuse se atém ao que ele qualifica de “reação” a este sentido de concretude histórica: posteriormente “a filosofia evitou, por boas razões, examinar de mais perto a faticidade material da situação histórica do sujeito ao qual se refere”.

Aqui se detém a concretude, aqui a filosofia se limita a falar da “vinculação de destino”, do povo, da herança que cada um tem que aceitar, da comunidade da geração, enquanto as outras dimensões da faticidade são deslocadas para o plano da existência inautêntica.

A filosofia não se perguntou pelo tipo de herança, pela forma de ser do povo, pelas forças e poderes reais que constituem a história. E Marcuse sentencia: dessa maneira, a filosofia renunciou a toda possibilidade de poder conceber a faticidade das situações históricas e de valorá-las reciprocamente – renúncia essa que é patente na orientação dos fenomenólogos para separar a obra e o contexto, como em Paul Ricoeur [72: p.53 sq].

Em contrapartida, a concretude do sujeito histórico para além da oposição entre espiritualismo e materialismo, creditada ao ativo da fenomenologia existencial, tem sua vertente sociológica nas concepções do jovem Marx expostas nos “Manuscritos de 44” (Cf.ed.Molitor, op.cit.) em que a religião, a família, o Estado, o direito, a moral, a ciência, o espírito não passam de modos particulares da produção e estão pendentes da ação global da mesma.

Quer dizer, na realidade social, trata-se de um “humanismo positivamente procedente de si próprio, um humanismo positivo” em que a ultrapassagem do dualismo das ciências naturais e das ciências humanas, como vimos, leva à constatação de que qualquer ciência é uma atividade prática, e, portanto comporta um coeficiente humano cabendo à sociologia a missão de encarnar essa ligação (cf. “Teses...”, op. cit.).

É a idéia do homem total e da sociedade total: a idéia de que, duas direções da mesma totalidade, o homem encontra a sociedade na sua ação pessoal e na sua própria consciência individual, assim como a sociedade encontra a realidade humana individual em cada um de seus atos. Tal a concretude plena do sujeito histórico como totalidade, que entra em foco como atitude ascética na fenomenologia de Ernst Bloch.

 

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Fragmentos de Leitura

 

 

A montage na burguesia declinante exprime o vazio do mundo preenchido pelas coincidências de uma história dos fenômenos, uma fenomenologia que certamente não é a boa, mas que no caso limite pode servir de alavanca para a boa prestando também certa maneira de assegurar a antiga cultura (gótico tardio).

 

 

 

O Princípio Omnia Ubique

 

 

►A reflexão estético-sociológica tem vertente poética no sentido filosófico do termo já contemplado por Aristóteles em vista de refletir a criação em arte e pode ser apreciada em íntima ligação com a literatura e arte de avant-garde, porém sob um modo que decorre da concepção mesma que Ernst Bloch nos comunica como orientando a composição de sua obra intelectual. Nesta se pode observar que a arte da montage está aplicada com a percepção de que a reflexão se elabora por partes intercambiáveis, partes estas que não atendem a ordem prévia alguma e o fio da meada que as une decorre somente da maneira como estão elas compostas em seqüências sucedendo um desiderato inicial.

A característica ab-norma encontrada, por exemplo, no Ulysses de Joyce é a mesma constatada mutatis mutandis no texto da reflexão de Ernst Bloch, notadamente em Héritage de ce Temps[iv]. Não que essa característica releve de um estilo personalista ou extravagância para com a reflexão filosófica no contexto da modernização. Pelo contrário. Tomando em conjunto por um lado o plano das idéias, procedimentos, métodos e por outro lado o plano das práticas, modos, atitudes, toda a reflexão e a filosofia desenvolvida na obra deste pensador do Século XX são fundadas na percepção de um tempo de transição, um tempo que está às vésperas de se orientar em uma nova direção, portanto, em ausência de intenção. Para traçar um paralelo com outro pensador contemporâneo, notamos que em Theodor W. Adorno[v] o elo com a literatura e a arte de avant-garde é exercido como Crítica da Cultura, por sua vez encontramos em Ernst Bloch para começar várias análises do vazio cultural correspondendo aos níveis em profundidade da realidade estética da cultura na estrutura de classes.

Inserido no contexto artístico dos Anos Vinte confrontado à intensa modernização e ao acelerado crescimento industrial, este autor aí interpela na decadência da cultura liberal e do individualismo a outra face da modernização, onde a standardização e o mundo administrado da comunicação social apenas se colocavam em perspectiva no horizonte da reflexão estético-sociológica. Todavia, não se pensa que a ausência de intenção tenha equivalência com alguma visão arbitrária da atividade artística como montage. Longe disso. Se a obra intelectual e artística é desprovida de ordem prévia e suas partes são intercambiáveis, com o interessado nela ou seu apreciador desempenhando ele próprio o papel novador ao combinar desde seu ponto de vista as partes intercambiáveis no horizonte da obra, isto não significará, em absoluto, a completa irracionalidade do contexto, destruição total das coerências ou significações culturais.

O exemplo provém do enlace da burguesia e da cultura. O relativismo anuncia a fissura na superfície fechada da realidade da cultura favorecendo a montage no sentido das combinações abnormais da grande burguesia com os movimentos culturais alheios à modernização na industrialização.

Quer dizer, o relativismo assim adotado e praticado conhece bem, exatamente por ser praticado, a figura estranha, destoante da normalidade e experimental dessas ruínas na superfície fissurada da realidade da cultura. Segundo Ernst Bloch será com esse relativismo das ruínas que, todavia, a burguesia declinante, liberal, transmitirá ainda uma cultura ou fará transmiti-la: uma cultura que visa o homem sob um feitio muito estranho, que atualiza certa maneira de proceder marcada com todo o caráter negativo do vazio, mas tendo também, em modo mediato, certo caráter talvez positivo de transportar as ruínas em um outro espaço que se opõe ao contexto habitual.

Por outras palavras, a montage na burguesia declinante exprime o vazio do mundo dela preenchido pelas coincidências de uma história dos fenômenos, uma fenomenologia, que certamente não é a boa, mas que no caso limite pode servir de alavanca para a boa prestando também uma maneira de assegurar a antiga cultura [vi] . Portanto, a ausência de intenção deve ser entendida no sentido dessa fenomenologia em caminho, em vias de se fazer como reencontro estranho da antiga cultura e do individualismo.

                               

A constatação em Joyce de que o todo está por todas as partes permite desvelar a racionalidade no relativismo experimental da montage em literatura e arte de avant-garde

 

        Desta sorte, o princípio de circularidade da reflexão filosófica de Hegel (omnia ubique) parece preservado na intercambiabilidade das partes aos olhos dessa mirada fenomenológico-concreta que, no vazio, rastreia traços microscópicos de cultura, mesmo sendo tal intercambiabilidade desprovida do movimento em espiral do sistema idealista dedutivo. Sem dúvida essa mirada é reforçada graças à constatação do omnia ubique sem o dedutivismo em Joyce, onde, observando inclusive a sua micrologia, o todo está por todas as partes, constatação esta que permite desvelar a racionalidade no relativismo experimental da montage em literatura e arte de avant-garde, alcançando a própria obra de reflexão estético-sociológica [vii].

Aliás, essa analogia do procedimento artístico com a obra filosófica está posta em relevo a respeito do proceder do próprio Hegel no seguinte trecho de Ernst Bloch fazendo sobressair o efeito de espelho aplicado na montagem do caleidoscópio: “(...) uma obra como a de Hegel, feita de tantas camadas forma um só livro, concretamente maduro. Digamos mais: no caso de Hegel era menos difícil ficar ligado a sua estrela, isto graças ao princípio que lhe é imanente: Omnia Ubique, o todo está por todas as partes, princípio do qual está pleno cada um dos conjuntos múltiplos que nele constitui a relação dialética sujeito-objeto. Esse princípio vem de Nicolas de Cusa e de Leibniz, mas o efeito de espelho que o mesmo implica fazendo que cada parte não cesse de refletir o todo é, finalmente, o que garante ainda a unidade de Hegel na sua diversidade dialética”.

Mas não é tudo. Há duas extensões do Omnia Ubique nos mostrando o alcance fenomenológico deste princípio. Primeiro: que daí provém o mesmo conhece-te tu mesmo encontrado em cada um dos degraus ou em cada uma das espirais ascendentes de A Fenomenologia do Espírito de Hegel; segundo: que daí provém igualmente a exigência para Hegel de que “em cada um dos conjuntos estruturais dialéticos arbitrariamente postos de parte, se esteja em medida de ver todos os mil outros, à única condição de que a mirada do sujeito considere como é preciso considerar o existente, que não cessa de se dividir, de se apaziguar e de novo se dividir [viii]. 

 

 

A preservação do Omnia Ubique nas ruínas das significações culturais é constatada através de uma fenomenologia em vias de se fazer pela redução das coerências em meras coincidências.

 

                    Se o caráter arbitrário do procedimento modelar da fenomenologia é acentuado nesse trecho que acabamos de ver é porque a intercambiabilidade das partes não se apresentava como realidade estético-sociológica da cultura, a realidade aberta, à época e aos olhos de Hegel, e ainda não se podia falar de uma fenomenologia em caminho, no dizer de Ernst Bloch. Nada obstante, a mirada para o existente está efetivamente suscitada, e se quisermos examinar com profundidade o mencionado paralelismo da reflexão estético-sociológica e da literatura e arte de avant-garde devemos fazê-lo pausadamente.

Vimos que a preservação do Omnia Ubique nas ruínas das significações culturais é constatada através dessa fenomenologia em vias de se fazer pela redução das coerências em meras coincidências. A partir dessa constatação, devemos ter em conta (a) - que essas coincidências não são apreendidas diretamente e sim em modo mediato, posto que produzidas pela montagem na burguesia; (b) – que nesse modo mediato se antecipa a perspectiva do mundo standardizado da comunicação social[ix]. 

Neste ponto, várias considerações se impõem para explicitar como a mirada para o existente é conseguida no contexto da arte referido por Ernst Bloch, em que a extensão da indústria cultural no mundo fissurado da coisificação não gerou ainda as formas de vida completamente identificadas ao Sempre Igual.

Com efeito, no contexto posterior assimilado nessa identificação ao Sempre Igual, Theodor W. Adorno distinguirá no sujeito da consciência standardizada o homem obnublado como material do personagem neurótico característico da literatura de avant-garde, enquanto Ernst Bloch, por sua vez, terá que exercer a mirada para o existente sob outra configuração e como já dissemos a encontrará no reconhecimento do contraditório.

Quer dizer, no contexto artístico do tempo de transição (ausência de intenção) vivido nos Anos Vinte, a linha configurando a equivalência das partes que levará à produção e re-produção do Sempre Igual não está ainda afirmada sobre a contradição, de sorte que a relativização em obra na intercambiabilidade das partes está ainda em franca atividade. Daí aquele desdobramento que já notamos em que o elemento dessa relativização leva ao reconhecimento do contraditório pela grande burguesia como o abnormal na intensa modernização, precipitando sua aproximação com os movimentos alheios (a montage na burguesia, reduzindo as coerências em coincidências).

Este desdobramento levará Ernst Bloch a diferenciar elementos muito antigos imiscuídos na cultura e não neutralizados ainda naquele contexto conturbado, sendo a tais elementos complexos que chamará não-contemporaneidade. Chegará assim esse autor às análises sobre o homem obnublado, em letargia de pensamento, como material artístico, por um viés antecedendo à predominância do Sempre Igual, mas relevando do reconhecimento do contraditório no vazio cultural. Buscará o homem obnublado em meio à expressão do impacto da modernização/industrialização acelerada (surgimento das grandes fábricas, grandes usinas, cidades industriais, etc., em curto espaço de tempo) sobre as massas e os setores sociais ainda não plenamente integrados e mais vulneráveis àqueles elementos muito antigos que herdados através do gótico tardio não se misturam, mas se intrometem[x].

 

 

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A tendência refratária ao espírito moderno, a paysennerie e a juventude.

 

                                                       Com efeito, nessas análises se põe em relevo que a busca do existente, do diverso, do homem obnublado como material artístico se efetua através da constatação de uma tendência refratária ao espírito moderno, o espírito da máquina e da racionalização.

O primeiro passo no estudo dessa tendência refratária atuando no capitalismo tardio da Alemanha dos Anos Vinte se faz a partir da descrição de certas espécies de vida social mais facilmente observadas por sua dificuldade de integração na modernização acelerada. Tal será notadamente o caso do homem do campo [xi].

Para este fim Ernst Bloch utilizará com alcance sociológico a noção de espécie, aproveitando a procedência biológica deste termo que guarda o elemento muito antigo do ancestral. Como conjunto de indivíduos que se reproduzem, as espécies sociais se afirmam no campo mikro da realidade da cultura não por um caráter coletivo, mas sim pela reprodução de um elemento muito antigo, ancestral, o caráter coletivo sendo tirado dos conjuntos mais amplos na superfície, em relação aos quais os primeiros se diferenciam exatamente como espécies.

Ernst Bloch nos diz que uma espécie recomeça sempre e que vem de muito longe, remarcando no "campesinato" (“paysannerie”) esta última qualidade, enquanto a primeira é reservada à juventude, a qual será estudada, sobretudo no interior da classe burguesa[xii].

 

A atitude objetiva moderna da juventude burguesa na Alemanha dos Anos Vinte, naquele tempo em ausência de intenção se mostrará apenas exterior.

 

             Desta forma, a atitude objetiva moderna da juventude burguesa na Alemanha dos Anos Vinte, naquele tempo em ausência de intenção se mostrará apenas exterior. Ao invés do apego moderno ao pensamento analítico e aos cálculos, o que se observa é o antigo gosto das qualidades viris conquistadas, do vigor e da franqueza; é o estilo apaixonado e ardente que aparecem mais fortes e valem mais do que as doutrinas.

No dizer de Ernst Bloch, as palavras exaltantes parecem mais exatas à juventude do que as palavras investigativas; os costumes parecem mais belos do que as cidades em modernização. Suas análises visam mostrar que os sonhos passados, compreendidos no sentido já mencionado de atividade onírica in-dormida[xiii], se associam na juventude à inquietação orgânica de maneira propícia aos movimentos de exaltação personalista, como eram aqueles movimentos alheios à modernização compostos pela montage na burguesia.

O modo de ser dos adolescentes leva-os a formar facilmente seus clubes procurando fazer amigos e buscando, sobretudo um pai que freqüentemente não é o seu verdadeiro pai no sentido de comungar nos mesmos ideais. Os jovens eram seduzidos pela imagem feudal do herói Chevaleresque das antigas ordens estamentais.

 

 

Em sua obra “Le Príncipe Espérance”, a função utópica é estabelecida no conhecimento filosófico como pulsão imprescindível à auto-conservação, sendo a partir dessa compreensão que Ernst Bloch a classificará na extensão do desejo de ser melhor aquinhoado, o qual resta em fato e necessariamente irrealizado no estado de atenção, base fenomenológica de toda a comunicação existencial.

 

 

 

 

Portanto, tendo em conta os fanatismos de era pródiga a Alemanha dos Anos Vinte, a análise desenvolvida por Ernst Bloch irá buscar nesse modo de ser dos adolescentes o exemplo que serve para compreender como a juventude era fácil de seduzir para ingressar em pequenos grupos com um líder conhecido no topo.  Por esta via, destaca-se a facilidade dessa juventude burguesa alemã em deixar-se seduzir para participar em associações com juramento de sangue como então havia e aparecia como abnormal para a grande burguesia. 

Quanto ao exame na paysannerie germânica dessa tendência refratária ao espírito da máquina e da racionalização será o apego ao solo antigo que se imporá como elemento ancestral.

Entretanto, antes de nossa exposição a respeito disso, devemos sublinhar o alcance filosófico das análises de Ernst Bloch.

Trata-se de estabelecer a eficácia diferenciada em nível das superestruturas dos sonhos passados como atividade onírica in-dormida e, por esta via, preparar o estudo da função utópica.

Com efeito, já notamos que no realismo estético de Ernst Bloch a função utópica é enfocada como o conteúdo que em estado de princípio cada um pode encontrar nos diferentes Nós que apreende e que por este mesmo estado de princípio, por aspiração, a arte pode pôr no horizonte que lhe é essencial.

Em sua obra de 1954 “Le Príncipe Espérance[xiv], a função utópica é estabelecida no conhecimento filosófico como pulsão imprescindível à auto-conservação, sendo a partir dessa compreensão que Ernst Bloch a classificará na extensão do desejo de ser melhor aquinhoado, o qual resta em fato e necessariamente irrealizado no estado de atenção, base fenomenológica de toda a comunicação existencial. Haverá, pois que distinguir dentre as imagens simbólicas ideais em que a sociologia estuda a moralidade ideológica aquelas outras que, ultrapassando-as, devem ser compreendidas, sobretudo como imagens-aspiração.

Vale dizer, se incluem nestas imagens-aspiração as anteriormente mencionadas imagens formadas de sonhos passados, as imagens diferenciadamente formadas pelo elemento onírico da arte que integram o ideal estético realista ou entelequial, sendo exatamente os sonhos passados que servem de critério da não-contemporâneidade.  

 

Para Ernst Bloch o problema é saber a que se deve o enraizamento obstinado da paysannerie germânica, como espécie social com lastro na ambiência cultural do gótico tardio legado dos séculos XV e XVI.

 

 

                    Todavia, não se pensa que os conhecimentos sociológicos restam desatendidos na abordagem de Ernst Bloch. Em sua análise da ambiência dos camponeses alemães como paysannerie são considerados aqueles bem conhecidos aspectos sociológicos relevantes da sobrevivência do modo de produção pré-capitalista, tais como: ser o campesinato uma classe possuidora dos próprios meios de produção; utilizar ela as máquinas agrícolas fazendo-o, porém no quadro antigo extensivo à fazenda e ao campo ao seu redor; o desconhecimento em tal ambiência tradicional da figura do fabricante capaz de introduzir o ofício de tecer mecânico e as atividades manufatureiras correspondentes; neutralização das oposições econômicas entre explorados e exploradores devido ao desempenho do papel de patriarca ativo pelo rurícola rico apesar das diferentes relações de propriedade, etc.

Se estes aspectos têm validade para acentuar ou reforçar a tendência refratária à modernização não definem por si sós o conteúdo não-contemporâneo autêntico da paysannerie, nem explicam completamente o sentimento dos homens do campo de representarem um estamento em permanência relativamente unido.

Para Ernst Bloch o problema é saber a que se deve o enraizamento obstinado da paysannerie germânica como espécie social, tendo lastro na ambiência cultural do gótico tardio legado dos séculos XV e XVI.

Quer dizer, o enraizamento obstinado da paysannerie deve ser compreendido como afirmando-se no exterior da propriedade dos meios de produção pré-capitalistas e como originado da própria matéria que os homens do campo trabalham, que os entretém e os alimenta em modo imediato; deve ser compreendido como parte do seu próprio corpo, a saber: que os rurícolas das regiões mais vinculadas ao medievo são colados no solo antigo e no ciclo das estações.

Tal o conteúdo autenticamente não-contemporâneo da tendência refratária à modernização na paysannerie germânica que servirá a Ernst Bloch inclusive como referência para explicar a persistência da forma gótica.

Ou seja, além de uma mentalidade cheia de uma velha desconfiança afirmada no idiotismo, no embotamento, na tradição do costumeiro e da fé, o senso de ser ligado no solo e na fazenda e o individualismo do rurícola germânico mostram a persistência da forma gótica nas mansões, nos móveis, e nos costumes campesinos como realidade da cultura[xv] . 

 

 

A Psicologia fenomenológica do tradicional na cultura.

 

                                                       Se quisermos fixar o esquema básico da sociologia literária de Ernst Bloch poderíamos começar por dizer que se trata de um estudo do tradicional na cultura (a) – considerado em oposição ao tempo presente do capitalismo dos Anos Vinte: o tradicional considerado efetivamente na tendência refratária à modernização acelerada; (b) – o tradicional como um campo estético diferenciado no âmbito das superestruturas.

A análise por Ernst Bloch vai mais longe do que o exame da correlação entre a tendência refratária à modernização e as formas pré-capitalistas sobreviventes. Buscando as manifestações dos sonhos passados como elementos oníricos in-dormidos e artísticos do tradicional na cultura, essa análise põe em relevo a eficácia estético-sociológica das imagens da interioridade apaziguante que têm por focos o solar, o solo, os "de baixo" [xvi].

Em uma abordagem de estratificação social descobre-se a psicologia coletiva (fenomenológica) dos de-baixo relacionada ao tipo do pequeno homem como abrangendo em linguagem sociológica (a) - a camada, ou melhor, a capa dos empregados definida por distancia social em relação aos peões de fábrica, (b) - a pequena burguesia antiga empobrecida em conseqüência do progresso das corporações e por isso decepcionada.

Por esta via, se distinguem inicialmente duas situações:

Primeiro ponto: as imagens aparentemente relevantes dos determinismos sociais das formas pré-capitalistas, como imagens nas quais o pequeno homem que perdeu posição e aspira a recuperar o dinheiro perdido se encontra de soslaio, furtivamente, mas está integrado no tempo presente do capitalismo.

Se este pequeno homem oblíquo pode vir a integrar as fileiras do fanatismo, do abnormal, não será em modo definitivo posto que bastará sua situação econômica melhorar para que ele deixe de ser brutal. Observado sobre um fundo de desvario e entontecimento destaca-se que a modernização intensa trouxe ao pequeno homem a embriaguez da distração na mesma proporção em que acentuou a confusão de medo e piedade[xvii]. Para Ernst Bloch este pequeno homem oblíquo não deseja outra coisa que tornar a ser doméstico e recuperar sua sujeição a um senhor feudal, buscando a obediência com apego à ordem e hierarquia.

Entretanto - este é o segundo ponto - toda a outra coisa são as imagens da interioridade apaziguante no sentido de harmonização, afirmadas pelo pequeno homem no curso de sua experiência da modernização como entontecedora, imagens estas de procedência recente se comparadas ás imagens feudais de busca da obediência.

Constata-se que, embora revelem um apelo que não atrai vantagens ou recompensas como as imagens da obediência atraem, as imagens da interioridade apaziguante são todavia representadas como imagens que já aparecem desgastadas, desbotadas, desanimadoras.

Dessa maneira a análise desenvolvida por Ernst Bloch classifica no primeiro ponto acima referido as imagens em que o pequeno homem vê a si mesmo em seu atraso cultural e social como integrante do capitalismo.

No segundo ponto, a análise classifica as imagens diferenciadas em que o pequeno homem simplesmente não se vê, não vê onde ele está, embora ele esteja totalmente no tempo presente do capitalismo, só que ele aí está em maneira amesquinhada e anestesiada.

 

Ernst Bloch empenha-se em busca do campo estético como o concretamente utópico e constata que as formas pré-capitalistas jamais realizaram os conteúdos visados do solar, do solo, dos "de baixo", de sorte que estes focos do tradicional na cultura já guardam desde o começo a qualidade de intenções insatisfeitas.

 

 

Mas não é tudo. O esquema da análise não é assim tão simples. Ernst Bloch empenha-se em busca do campo estético como o concretamente utópico. As formas passadas ou pré-capitalistas jamais tornaram em fatos realizados os conteúdos visados do solar, do solo, dos de-baixo, de sorte que estes focos do tradicional na cultura já guardam desde o começo a qualidade de intenções insatisfeitas.

Além disso, notando que estas intenções insatisfeitas passam ao longo da história por contradições veladas, Ernst Bloch as examinará desde a colocação em perspectiva filosófica, para além da psicologia representacional, tratando-as como conteúdos intencionais não ainda trazidos à luz do passado na realidade da cultura, o que o levará a definir o campo estético em eficácia como o concretamente utópico.

A partir dessa orientação dialética em profundidade torna-se possível, portanto penetrar na psicologia fenomenológica do tradicional.

A análise descobrirá então o seguinte: (a) – que foram extintos os deveres, os ramos da cultura e estado mental da antiga pequena burguesia; (b) – que, oculto sob esta extinção, o pequeno homem se ressente da falta de alguma coisa habitual, psíquica, móbil, e (c) – que este algo habitual em falta não é uma coisa somente econômica, mas é uma carência profunda que no seu ser ele opõe ao tempo do capitalismo. 

Entrementes a análise passa a um grau maior de complexidade ante a constatação de uma coincidência na afirmação deste opor ou contrapor no ser do pequeno homem ao tempo mesmo do capitalismo. Ou seja, o opor dessa ausência ressentida é afirmada desde o âmbito interior do sujeito em feição apática e morna, enquanto no âmbito da vida exterior é afirmada junto com os vestígios estranhos inseridos no tempo presente do capitalismo, é afirmada coincidentemente com os vestígios dos tempos antigos pré-capitalistas que restaram.

Daí, dessa coincidência complexa, decorrem certas características da psicologia fenomenológica do tradicional, como psicologia em ausência de móbil, que em realidade configuram as características do campo estético.

 

O problema da análise é a coincidência no momento exterior: o opor não-contemporâneo do pequeno homem que coincide com as manifestações residuais da sociedade antiga sem implicar isto em correlações funcionais com as formas pré-capitalistas.

 

                                                      

Com efeito, o problema da análise é a coincidência no momento exterior: o opor não-contemporâneo do pequeno homem que coincide com as manifestações residuais da sociedade antiga sem implicar isto em correlações funcionais com as formas pré-capitalistas.

Desta forma, posto não haver correlações funcionais, Ernst Bloch assinalará não só a ausência de equilíbrio da carência profunda contraposta neste opor, por isso designado não-contemporâneo, mas classificará igualmente desequilibrada a contradição mesma em opor aquela carência profunda.

Isto será feito por duas razões, seguintes: (a) – porque essa notada contradição encontra-se em desalinhamento com as formas pré-capitalistas residuais; (b) – porque essa notada contradição constitui o fator de ativação dessa outra contradição interligada que é a modernização em contradição com a consciência da sociedade antiga, funcionalmente correlacionada esta sim àquelas formas pré-capitalistas.

Caso este que, por exemplo, é observado na consciência do "campesinato" (paysannerie) lá onde equivocadamente a classe dos camponeses se percebe a si própria como um estamento, à feição dos grupos tradicionais que caracterizaram as ordens feudais de chevalerie.

Mas não é só a explicitação dessa consciência extemporânea que a constatação da coincidência complexa nos apresenta. A carência profunda contraposta e a contradição no opor não-contemporâneo do pequeno homem comportam variação conforme a colocação em perspectiva do shock histórico no quadro social mais amplo no qual ele está inserido.

Acrescente-se que, como não-contemporaneidade, o caráter desalinhado dessa psicologia fenomenológica, sendo proveniente de antigas intenções insatisfeitas, deixa transparecer o que Ernst Bloch classifica como sentimento de cólera recalcada: um rancor excluído do campo consciente, mas permanecendo intacto em sua força na vida psíquica dos indivíduos.

Na medida mesmo desse transparecer são notados os dois eixos de variação da não-contemporaneidade dessa psicologia de ausência de móbil, a saber: (a) – em época apaziguante, essa cólera recalcada mantém-se próxima da feição apática e morna com que a ausência ressentida do algo habitual em falta afirma-se subjetivamente, todavia podendo aparecer ou como atitude exasperada ou como atitude meditativa, mas em todo o caso uma atitude daquele que se recolhia na intimidade de uma vida social que ele não mais acompanhava; (b) – entretanto, essa configuração se altera sob a época desordenada da modernização/industrialização acelerada dos Anos Vinte, na Alemanha, como região a mais enraizada no medievo, e o recalque poderá então irromper como a rebelião da cólera retida, notada exatamente a partir da ativação não só da consciência coletiva de outra época (antiga), mas da ativação do próprio ser coletivo que lhe é subjacente.

Segundo Ernst Bloch – e este será o coroamento do momento inicial de sua análise em busca do campo estético como o concretamente utópico, que expusemos nos parágrafos anteriores – tal potência daquela psicologia coletiva em ausência de móbil deve ser interpretada a partir dos rastros e das lacunas de certa expressão romântica (que nosso autor descreverá em certas formas literárias, como mencionamos em artigo anterior).

Ou, no dizer do próprio Ernst Bloch, deve ser interpretada tomando por base a constatação de que a pequena burguesia tradicional embeleza no presente do capitalismo o passado cultural, ela opõe a tal presente suas antigas aspirações não realizadas misturadas ao melhor relativo do passado.

Entretanto, esse embelezar estético do passado tem um componente trágico que, todavia, é concretamente utópico. Componente este que não é limitado ao fato de que o melhor relativo embelezado são os aspectos das formas pré-capitalistas cujos vestígios estão ultrapassados no presente do capitalismo em modernização.

Por esta via, o componente trágico no embelezar do passado que é também um componente concretamente utópico põe em relevo o modo do opor do pequeno homem como sendo um modo não-contemporâneo, porque se trata de um opor afirmado em face de um tempo presente no qual até mesmo a última satisfação também desapareceu[xviii]. Tal o concretamente utópico que define o campo estético em eficácia diferenciado no âmbito das superestruturas ao século XX para as regiões mais enraizadas no medievo.

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©2008 by Jacob (J.) Lumier

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A análise do problema do legado do passado dentro do processus histórico.

Continua na Página O TRADICIONAL NA MODERNIZAÇÃO

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Notas Complementares



[i] Cf. tópico "O Romantismo na Modernização", Page "Observações para a Crítica da Cultura", link: http://openfsm.net/people/jpgdn37/observacoes-para-a-critica-da-cultura  

[ii] Cf. Bloch, Ernst: Héritage de ce Temps, op. cit, p.211. Como se verá adiante, no termo antiga cultura Ernst Bloch tem em vista o Gótico tardio.

[iii] Ernst Bloch verificará em sua forma efetiva a idéia de graus de realidade, que é essencial à toda a manifestação possível de um pensamento histórico.

[iv] Cf. Bloch, Ernst: Héritage de ce Temps (Erbschaft dieser Zeit, Zürich, 1935), tradução de Jean Lacoste, Paris, Payot, 1978, 390 pp.

[v] Ver neste Website o ensaio Crise do Romance e Individualismo e o artigo Crítica da Cultura e  Surrealismo: para além da Psicanálise.

[vi] Cf. Bloch, Ernst: Héritage de ce Temps, op. cit, p.211. Como se verá adiante, no termo antiga cultura Ernst Bloch tem em vista o Gótico tardio.

[vii] Cf. Ib, p. 208.

[viii] Cf. Bloch, Ernst: Sujet-Objet: éclaircissements sur Hegel, Gallimard, 1977, pág.34. (Edição em Alemão: Subjekt - Objekt: Erläuterungen zu Hegel, Berlin 1951; Editado em castelhano: El pensamiento de Hegel. Tradução Wenceslao Roces Mexico City/Buenos Aires 1949). Ver Lumier, Jacob (J.): “A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè”, 2006, pdf, neste Website.

[ix] Embora seja um capitalismo tardio, lembre-se que a Alemanha nos anos vinte e trinta já vivia no tipo de sociedade global do capitalismo organizado e dirigista, onde a antiga cultura herdada do gótico tardio combinada às sobrevivências econômicas précapitalistas coexistiam com a intensa modernização e acelerada industrialização.  

[x] Cf. Bloch, Ernst: Héritage de ce Temps, op. cit, pág. 95 sq.

[xi] Já dissemos que o homem do campo estudado por Ernst Bloch, dado seu distanciamento do moderno, está em um tempo bem diferente da paysannerie francesa, mas tem em semelhança o conteúdo econômico objetivo dos conflitos verificados no século XVI nas terras germânicas.

[xii] Cf.ib.pp. 96, 97 sq.

[xiii] Ver sobre esta noção de sonho como atividade onírica in-dormida o artigo A Arte da Montage e a Modernização na Filosofia Literária de Ernst Bloch: comentários sobre Joyce e o surrealismo, neste website.

[xiv] Bloch, Ernst: Das Prinzip Hoffnung, 3 vol., Berlin 1954/1955/1959. Tradução francesa Le Principe espérance, vol. 1, Paris, Gallimard, " Bibliothèque de philosophie", 1976.

[xv] Cf. Bloch, Ernst: Héritage de ce Temps, op. cit, pp. 98, 99.

[xvi] Cf. Bloch, Ernst: Héritage de ce Temps, op. cit, pp.103, 107 sq, 111.

[xvii] Sobre a confusão de medo e piedade, ver neste Website o citado artigo A arte da Montage e a Modernização na Filosofia Literária de Ernst Bloch: comentários sobre Joyce e o surrealismo.

[xviii] Cf. Bloch, Ernst: Héritage de ce Temps, op. cit, pp. 108.