• Crᅢᆳtica ao Produtivismo e Sociologia

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Seria Durkheim Altermundialista?

(Crítica ao Produtivismo e Sociologia)



Jacob (J.) Lumier

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 Nova edição completada em 12 de Novembro 2009

 

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Movimentos Sociais e Sociologia:

Notas sobre a vida moral como sentimento de pertença aos grupos sociais

(Seria Durkheim altermundialista?)

Artigo originalmente postado na

Web de Sociologists without borders (SSF) Think Tank

Por

Jacob (J.) Lumier

http://www.ssfthinktank.org/profile/JacobJLumier

 

Resumo:

 A oposição de Durkheim à doutrina eudemonista do utilitarismo interessa à crítica ao produtivismo exercida pelo altermundialismo. Em sua obra, essa oposição a qualquer absoluto eudemonista não é episódica, mas fundamental à sociologia da vida moral fundada por ele, cujo desenvolvimento, porém, exige tomar em consideração o aporte de seu continuador Georges Gurvitch.

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English version:

Sociology and social movements: notes on the moral life as a feeling of belonging to social groups (? Would be Durkheim alter-globalist?).

Abstract: Durkheim's opposition to the doctrine of  utilitarianism as eudaimonism it has an interest to the criticism about the productivism exercised for the alter-globalization. The rejection of eudaimonism as an absolute is not episodic, but basic on sociology of moral life, whose development, however, is offered for consideration of Durkheim's successor Georges Gurvitch.

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Spanish version:

Sociología y movimientos sociales: notas sobre la vida moral como un sentimiento de pertenencia a grupos sociales (? Sería Durkheim alter-mundialista?).

Resumen: la oposición de Durkheim (1858-1917)  a la doctrina del utilitarismo como eudemonismo tiene un interés para la crítica sobre el productivismo ejercida por el alter-mundialismo. El rechazo del eudemonismo como un absoluto no es episódico, pero básico en la sociología de la vida moral, cuyo desarrollo, sin embargo, se ofrece a la consideración del sucesor de Durkheim Georges Gurvitch.

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Tópicos

 

 

Notas sobre a vida moral como sentimento de pertença aos grupos sociais 1

Utilitarismo e ecologia 3

Compreender a vida moral 5

Orientação de Durkheim  7

Experiência e Variabilidade em Sociologia da Vida Moral 9

A definição sociológica dos fatos morais 10

Créditos de Durkheim  12

Moralidade real 13

Sistemas de moralidade 14

Função da vida moral nas sociedades 15

Os determinismos da vida moral nas superestruturas 17

O estudo da vida moral da classe camponesa 17

O Psiquismo refratário à modernização 18

O determinismo da moral tradicionalista camponesa 19

Notas Complementares 20

(Nota 01) 20

Linhas para uma Sociologia do Saber Histórico 20

Jacob (J.) Lumier 22

 


 

Notas sobre a vida moral como sentimento de pertença aos grupos sociais

(Seria Durkheim altermundialista?)

Jacob (J.) Lumier

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Utilitarismo e ecologia

 

Como se sabe, as questões públicas são recorrentes e muitas vezes reaparecem combinadas em outras configurações dos temas coletivos sem que nos apercebamos dessa historicidade.

Hoje em dia, com a maior aglutinação dos movimentos sociais junto ao Fórum Social Mundial – WSF, inclusive pela Internet (veja aqui o link para OpenFSM: http://openfsm.net/ ), acrescido da  maior influência junto ao Parlamento Europeu da corrente Europe Ecologie (veja aqui o link: http://www.europeecologie.fr/) a questão pública da ecologia desdobrando-se na crítica ao produtivismo revela-se um marco de recorrência para contestar a atribuição de valor absoluto para a idéia de que mais bens materiais fazem crescer a felicidade, lema produtivista este em que participa o utilitarismo moderno, como filosofia pública do que tem utilidade para o maior número.

Expandindo-se como mensagem cativante aos progressistas da época, (as idéias de democracia, progresso e de direito à escolha são três idéias que podiam ser explicadas em termos utilitaristas liberais) a influência do utilitarismo no século 19 e começos do século 20 não foi somente uma ideologia restrita aos economistas.

Pelo contrário, na medida em que colocou em pauta a questão dos critérios de valor de uma norma, relacionando-a a sua utilidade como  imagem de felicidade para o maior número, como se sabe, o utilitarismo suscitou reações em vários meios intelectuais, notadamente entre os sociólogos diligentes como Émile Durkheim, que aí contestou o eudemonismo.

Com certeza trata-se de um aspecto pouco explorado no estudo da obra de Durkheim. Além de deixá-lo contra a corrente, sua conhecida oposição ao utilitarismo como questão pública, referida por seus continuadores como Georges Gurvitch, tivera notado alcance em sua elaboração intelectual, especialmente para a sociologia da vida moral, de tal sorte que um comentário aprofundado a respeito disto pudera revelar o interesse deste mestre da sociologia para os movimentos sociais em época de questionamento da ideologia produtivista, como hoje em dia, tanto mais que, ao pesquisar a realidade da consciência coletiva, Durkheim antecipou o fato de que não há comunicação sem o psiquismo coletivo.

Com efeito, a crítica ao produtivismo comporta preliminarmente duas orientações que simplificando podemos designar no seguinte: (a) "capitalismo verde": admite um crescimento mais desmaterializado, com menos CO2, por exemplo; e (b) "new deal verde": preconiza como necessário um pequeno decrescimento econômico nos países mais ricos. O problema que desafia a ambos é superar o imperativo da busca de crescimento constante a que se costuma associar o Homo Faber.  

Faz-se a justa crítica de que todas as formações políticas de direita ou de esquerda partilharam até o começo dos anos 1980 a noção de que a vocação do homem é produzir, fazendo da técnica e da tecnologia o principal instrumento de sua emancipação. O "ideal" entre aspas dessas formações é que o investimento aumente a produtividade do trabalho, e diminua pela utilização das máquinas o tempo socialmente necessário à produção de bens.

Neste sentido, haveria a superar com urgência um culto da produção e da abundância associado à revolução Industrial,  com seus efeitos negativos cada vez mais acentuados, tais como a destruição da biodiversidade, a rarefação dos recursos, o aquecimento global, a acumulação de poluições e dejetos para além do limite crítico de regeneração da biosfera, da água dos rios, e de toda a capacidade de recarga do planeta. Efeitos esses mensurados pela "Ecological Footprint" ( Huella Ecológica ou Marca Ecológica) de que nos fala o "Living Planet Report 2008" (veja aqui o link:

http://www.panda.org/about_our_earth/all_publications/living_planet_report/ )

 

Questionam-se os sociólogos históricos pela contemplação da sociedade industrial em suas pesquisas: Max Weber teria se limitado a assinalar no Ocidente as características necessárias ao capitalismo, a que correspondeu o desenvolvimento produtivista, hoje centrado no cálculo do PIB como indicador principal da economia. Karl Marx é tido por ambivalente, seja ao considerar positivo, por um lado, o desenvolvimento das forças produtivas alimentado pela técnica combinada à ciência, seja, por outro lado, ao tomar por negativo cada progresso da produção como acentuando a opressão dos trabalhadores.

A tomada de consciência dos perigos do produtivismo não teria se anunciado até os anos 1970, quando o paradoxo entre um mundo finito e a constrição de um crescimento sem fim emergiu nas conferências internacionais [1].

 Desta forma, a crítica ao produtivismo tem alcance profundo, mostra-se ação transformadora nem só das estruturas, mas dos quadros operativos da ação histórica, como consciência da liberdade: ação concentrada que não somente almeja dirigir a mudança das estruturas a partir de modelos e estratégias, mas busca notadamente redirecionar a economia e o planejamento econômico para os referenciais e medidas ecológicas, em vista de ultrapassar  pela implementação dos indicadores "físicos" da ecologia política os procedimentos ecologicamente insuficientes (como l’épargne nette ajustée (ENA) de la banque mondiale) relacionados ao modelo produtivista de cálculo do Produto Interno Bruto - PIB, como se pode ver no artigo de 19/06/2009 na seção economie junto à Web de Attac France – Pré-rapport de la Commission Stiglitz, veja aqui o link:

http://www.france.attac.org/spip.php?article10102

 

Não obstante esse alcance estratégico e sua restrição ao vínculo dos sociólogos com a sociedade industrial (a busca do desenvolvimento econômico e o desenvolvimentismo), e na medida em que contesta a absolutização da idéia de que mais bens materiais fazem crescer a felicidade, a crítica ao produtivismo encontra base na oposição ao utilitarismo sustentada por Durkheim (1858-1917) em seus estudos de sociologia da vida moral.

Com efeito, deve-se notar que, objetivando notadamente o eudemonismo, a oposição durkheimiana ao utilitarismo não é episódica, mas fundamental, tanto mais se tivermos em conta a introdução por Durkheim da noção do desejável como indispensável à sociologia.

Caso não participasse das questões públicas e assumisse oposição sociológica ao utilitarismo, reforçado este último depois de Jeremy Bentham (1748-1832)  e John Stuart Mill (1806 - 1873) e que gozava de  excepcional prestígio nos meios progressistas da época, como se sabe, Durkheim não seria suscitado à descoberta original do quadro da sociologia da vida moral, a que chegou passando por uma reflexão aprofundada junto com a filosofia de Kant. 

Fora-lhe essencial sua recusa em aceitar a "utilidade" como critério último das ações humanas e como base mensurável de análise das questões políticas, sociais e econômicas. Da mesma maneira, ao repelir toda a tentativa em estabelecer um absoluto para a vida moral com imposição aos fatos sociais, tornou-se igualmente indispensável ao notável sociólogo repelir como eudemonismo a pretensão utilitarista em reduzir o valor de uma norma unicamente a sua utilidade como critério de felicidade para o maior número.

Oposição sociológica esta tanto mais consequente quando se sabe que o utilitarismo liberal está longe de ser uma proposta inconsistente. A idéia de que uma das funções da política é promover o bem-estar humano encontra no mesmo uma justificação teórica adequada (a democracia podendo ser vista como uma espécie de Utilitarismo aplicado, na medida em que, sendo o governo da maioria, defenderá os interesses do maior número).

Sem embargo, a oposição ao utilitarismo e a descoberta do desejável não foram suficientes para Durkheim chegar a consolidar um método operativo e eficaz adequado à sua compreensão da especificidade da sociologia da vida moral, da qual foi fundador.

Como se sabe, Durkheim equivocadamente partilhou com os adeptos da chamada "ciência dos costumes" a crença específica à sociologia herdada do século 19 que projetava a possibilidade de conhecer e de prescrever simultaneamente. Em maneira ingênua, prolongando-se aos inícios do século 20, naqueles meios intelectuais sociológicos, esperava-se tirar de um conhecimento teórico prévio uma doutrina moral que impusesse objetivos e prescrevesse regras justas de conduta.

 

 

Compreender a vida moral

 

  Se essa crença limitou o desenvolvimento da sociologia da vida moral, outro será, todavia, o aspecto criticável do método durkheimiano para a determinação da especificidade sociológica do fato moral, notada por seu continuador Georges Gurvitch. Trata-se de uma insuficiência decorrente da tese falaciosa de que, na competência do sociólogo, é bastante difícil compreender a vida moral como apego e sentimento de pertença aos grupos sociais se a mesma não for equiparada à prática histórica religiosa, isto é, ao hábito, à regularidade e à disciplina, típica dos monges da Idade Média.

Sem embargo, há nessa orientação criticável um aspecto positivo favorecendo como se verá a distinção entre valores culturais e valores econômicos. É que tal sobrestimação do estatuto sociológico da vida religiosa monacal sublimando a moralidade tradicional e a moralidade imperativa – às quais corresponde a predominância dos mencionados hábito, regularidade, disciplina – dará procedimento à polêmica que, em privilégio desses últimos critérios, Durkheim sustentou justamente contra as morais eudemonistas, onde os mesmos não se encontram valorizados.

 Por sua vez, as doutrinas eudemonistas especulam como se sabe sobre um conteúdo moral suposto unitário e imediato, na idêntica medida em que as mesmas buscam em uma contemplativa natureza humana um absoluto para a vida moral com imposição lógica aos fatos sociais e às manifestações particulares da sociabilidade, a saber: as morais do que é útil, do que é técnico, do que dá prazer (hedonismo).  

Mas o assunto não é assim tão simples. O aspecto positivo acima assinalado, quando interpretado por sua vez desde o ponto de vista da teoria sociológica revela-se igualmente contraditório.  

Se a valorização de hábito, regularidade, disciplina o instruiu em sua polêmica, a razão pela qual Durkheim deixou incompleta sua tentativa em delimitar o domínio da vida moral como apego e sentimento de pertença aos grupos sociais deve-se exatamente ao privilégio da moralidade tradicional e da moralidade imperativa em suas análises (note-se que, além destes, existem vários gêneros de vida moral já distinguidos pelos adeptos da "ciência dos costumes", sociólogos e historiadores nos inícios do século 20, tais como a moralidade das imagens simbólicas ideais, propriamente ideológica, a moralidade dos juízos preestabelecidos, a própria moralidade de aspiração, dentre outras).

Quer dizer, a incomplementação deixada por Durkheim sobressai quando seus critérios são postos em face de certas referências qualificadoras do fato jurídico como o são a coação e a sanção, já que o mestre sociólogo não tivera conseguido diferenciar destes últimos a sua sugestão em considerar o hábito, a regularidade, a disciplina como critérios específicos dos fatos morais.

Além disso, no rastro dos deísmos, o sociologismo durkheimiano (uma metamoral do tipo Platão, Hegel ou Espinosa, com a consciência coletiva identificada ao Bem supremo) dificulta a aceitação de que o problema dos fundamentos da validade dos valores e dos ideais, sua justificação, pertence com exclusividade à filosofia moral, ultrapassando a competência da sociologia.

É claro que essas insuficiências não prejudicam a contribuição do pensador. Trata-se aqui do mestre dos sociólogos cujo legado é indispensável à teoria sociológica.  Para além de qualquer limitação, Durkheim ensina que os ideais fundamentadores da objetividade dos valores ideais são eles próprios simultaneamente produtores e produtos da realidade social, a qual desta maneira é penetrada por significações humanas, e não inerte ou exteriorizada como se supõe ser a matéria da Física ou da Química.

Fato este básico, pois, em razão de serem integrados na realidade social e por efeito material dessa integração, os elementos do psiquismo individual e do psiquismo coletivo passam à própria realidade social suas energias ou emanações subjetivas tornando-a penetrada por significações humanas até mesmo em sua base morfológica (as amplitudes concretas dos objetos de conhecimento já estudadas por Gurvitch), de tal sorte que a aspiração aos valores não se deixa reduzir ao aspecto mental, mas penetra a realidade social inteira, com expressão privilegiada nas formas de sociabilidade (devidamente estudadas na microssociologia que, mediante o recurso da dialética, vem a ser descoberta na formação dos grupos sociais).

Mas não é tudo, da efetividade da integração como faticidade humana imprimindo a diferença específica da realidade social – imanência recíproca do individual e do coletivo –decorre a propriedade básica em teoria sociológica de que a consciência coletiva seja uma consciência aberta às influências do ambiente, toda a tomada de consciência implicando as atitudes coletivas (que, desta forma, são fenômenos não apreensíveis, criações em fluxo, Gurvitch as designará fenômenos sociais totais completos e soberanos).

Os ideais em sua eficácia motora são elementos constitutivos da coletividade e emanam dela – daí Durkheim falar de coletividade de aspiração lá onde se trata de aspiração aos valores como qualidade não objetivada da consciência coletiva (lembro que P. Berger e T. Luckmann reconhecem essa qualidade não objetivada sob a noção de desreificação).

 

Orientação de Durkheim

 

Em seu pensamento objetivo Durkheim compreende os ideais em maneira descritiva como obstáculos (apreendidos, no sentido em que comparativamente o são as amplitudes concretas do conhecimento perceptivo do mundo exterior), supondo o critério sociológico de sua resistência justamente à penetração pela subjetividade coletiva como o complexo psico-sociológico das significações humanas (ou "coletividade de aspiração", no dizer de Durkheim, como vimos, que aí inclui as crenças coletivas), levando-o a conceber os ideais exatamente como os termos motores dessas aspirações, seus focos irradiadores.

 Diferentes dos valores baseados no critério da utilidade, como os valores econômicos costumam mostrar-se, aqueles outros valores chamados culturais, compreendidos por Durkheim como valores ideais ou fundados nos ideais podem ser definidos do ponto de vista da sociologia da vida moral (considerada esta última em sua autonomia e em sua especificidade) em termos de instrumentos de comunhão social (no sentido da mais intensa imanência recíproca entre o individual e o coletivo na sociabilidade de um Nós o mais constrito) e princípios de incessante regeneração justamente para a vida nos ideais, podendo ser comparados a ímãs que atraem e merecem atrair a "vontade" ou  esforços humanos convergentes.

Como se sabe, a orientação para a sociologia da vida moral em Durkheim compreende dentre outros aspectos o seguinte: (a) – a objetividade dos valores propriamente culturais não se reduz à sua mera coletividade ou recorrência em grande número; (b) – as principais obras de civilização como a religião, a moral, o direito, a arte são sistemas de valores culturais; (c) – a validade objetiva dos valores culturais consiste na sua referência ao nível de realidade mais profundo dos ideais.

A afirmação dos valores como sendo objetivos está em que as coisas e as pessoas às quais tais valores são atribuídos atendam à condição de serem coisas e pessoas que estão postas em contacto com os ideais por efeito do estado mental de afetividade coletiva (sentimento do desejável ou sensibilidade indefinida, incluindo as propensões, tendências, preferências, e todo o conjunto das orientações afetivas do psiquismo, por diferença dos atos mentais como as intuições e os juízos).

Tal é o efeito (imãs da vontade) que qualifica propriamente a subjetividade coletiva como aspiração (aos valores), notando-se o aspecto de imãs da vontade que os valores assumem neste contacto com os ideais. Os ideais tomados por si não são representações intelectuais abstratas, frias, mas como dissemos essencialmente motores.

Durkheim alcançou as bases da sociologia da vida moral, sobretudo pelo aproveitamento original que tirou de sua reflexão junto com a filosofia de Kant, levando-o como se sabe a introduzir em diferença deste último que a ignorou, como já foi dito, a noção do desejável na análise dos valores.

Com efeito, é para a funcionalidade dos valores ideais, sua característica estritamente sociológica de instrumentos de comunhão social (no sentido acima definido) e princípios de incessante regeneração da vida nos ideais se afirmando indispensavelmente por meio da afetividade coletiva, que se refere a utilização do termo desejável na seguinte formulação durkheimiana: qualquer valor pressupõe a apreciação de um sujeito em referência de uma sensibilidade indefinida – é o desejável, qualquer desejo sendo um estado interior.

Definição descritiva esta que não só torna extensível a característica do desejável a qualquer valor para além dos valores ideais (qualquer valor tendo assim alguma participação nos ideais), mas, por esta via os engloba igualmente na noção de funcionalidade expressa na fórmula acima mencionada a respeito destes últimos ("qualquer valor pressupõe a apreciação de um sujeito em referência de uma sensibilidade indefinida"), fórmula esta pela qual a sociologia elimina radicalmente a pretensão de um absoluto eudemonista por estranho à afetividade coletiva.

Como admitem seus continuadores, em sua aplicação exclusiva à sociologia da vida moral, a concepção de Durkheim deveria conduzir ao estudo empírico das correlações funcionais entre os valores morais e os conjuntos sociais.

Para esse desdobramento apontaria sua fórmula acima de que "qualquer valor pressupõe a apreciação de um sujeito em referência de uma sensibilidade indefinida", isto é, pressupõe a experiência com afetividade coletiva de uma busca suscitada pelo desejável.  Além disso, o estudo empírico das correlações funcionais entre os valores morais e os conjuntos sociais se encontra favorecido notadamente em razão do seguinte: (1) – Durkheim chega a opor para fins de análise os valores ditos culturais a outros valores, insistindo ao mesmo tempo na variedade infinita e na particularização de todos os valores sem exceção; (2) – põe em relevo o papel que desempenham os valores na formação da própria realidade social.

Daí que, enfim, seus continuadores possam completar a concepção durkheimiana com a constatação das flutuações dos valores, os quais se juntam e se interpenetram depois de se terem diferenciados – a conjunção dos valores (C. Bouglé).

Sem embargo, será sua concepção metamoral tomando a consciência coletiva como identificada ao Bem supremo que explica (a) – por que Durkheim envolveu seu método em um círculo vicioso entre chegar ao fato moral por indução ou por dedução – sendo esta última na verdade que constitui o seu raciocínio conceitualista; e (b) – limitando-se dessa maneira ao raciocínio exclusivamente lógico, sua metamoral explica igualmente por que se manteve estranho ao reconhecimento da existência das experiências morais coletivas e dos métodos de análise que, mediante procedimentos dialéticos tais como a colocação em reciprocidade de perspectiva, reconduzem a estas experiências variadas e só raramente imediatas (têm nos símbolos sociais os seus intermediários).


 

 

Experiência e Variabilidade em Sociologia da Vida Moral

 

Admitindo a dimensão não imediata, mas mediata da experiência moral nota-se como disse a importância dos símbolos acentuando a flutuação da experiência moral em função dos quadros sociais.

O postulado básico da sociologia da vida moral é realizar obra científica na medida em que se afirma uma disciplina com orientação relativista [2] e empirista adotando como ponto de referência para o estudo dos fatos morais o conceito estritamente sociológico de atitudes morais, compreendendo as atitudes coletivas ou individuais penetradas pela experiência moral [3].

A utilização deste conceito de atitude é de alta valia, viabilizando, por sua vez, o acesso a toda a multiplicidade dos aspectos e variações da vida moral na medida mesma em que os integra nos quadros sociais a que pertencem, procedimento de integração este que é característico do estudo sociológico, já que, em acordo com Georges Gurvitch [4], não se pode dar primazia a um gênero de experiência moral, como se esta fosse uma experiência integralmente imediata.

Quer dizer, em sociologia não tem base o propósito de definir a experiência moral seja como perpétua revolta, seja como indignação, seja como obrigação etc. porquanto, com atribuições destes gêneros ao conteúdo moral, se pretenda esgotar o campo da experiência moral.

Admitindo a dimensão não imediata, mas mediata dessa experiência, trata-se de aí pôr em relevo a importância dos símbolos, acentuando a variabilidade e mobilidade, a flutuação da experiência moral em função dos quadros sociais tais como sociedades globais, classes sociais, agrupamentos sociais particulares, formas ou manifestações de sociabilidade.

►Aliás, não só o nível simbólico deve ser posto em relevo, mas a variação mesma entre o caráter mais imediato – a apreensão direta do conteúdo moral – e o caráter mais mediato (apreensão realizada pela intermediação dos símbolos sociais) passa a constituir um aspecto da própria experiência moral.

Portanto, favorecido com a possibilidade de chegar à realidade da vida moral através da análise em profundidade do nível dos símbolos sociais, o ponto de vista probabilitário vem a ser afirmado e acolhido.

Delineia-se então, menos que uma definição filosófica, uma delimitação descritiva e ampla da experiência moral como variável funcional.

Segundo Gurvitch, o termo apropriado para a definição descritiva pode ser tirado da linguagem corrente na vida social histórica onde a consciência da liberdade (prometeísmo [5]) e a competitividade combinam, a saber: a noção de luta.  

No sentido de uma teoria dinâmica a luta humana implica a história, mas não depende da história e constitui uma experiência que tanto é uma experiência vivida quanto o é experiência percebida nos quadros sociais.

Por efeito da reflexão coletiva a luta humana pode ser e efetivamente é simbolizada e conceituada. Aliás, simbolização e conceituação essas que evidentemente admitem graus em relação à sua apreensão intuitiva.

Portanto, esses graus de experiência moral devem ser bem acolhidos na fórmula da definição que lhe corresponde, haja vista a defasagem entre o apreendido e o conhecido que constitui fator de variabilidade nesse ramo especial que é a sociologia da vida moral.

A fórmula proposta por Gurvitch é a seguinte: “a experiência moral vivida, percebida e admitindo graus diversos de simbolização e conceituação é uma luta contra todos os obstáculos que se opõem ao esforço humano, quer coletivo quer individual, luta afirmada como manifestação digna de aprovação desinteressada”.

O objetivo do estudo sociológico é, pois, fazer a variabilidade sobressair na vida moral que, ademais de variar entre o imediato e o mediato, ocorre em numerosos sentidos, haja vista sua não-dependência da história.

 

 

A definição sociológica dos fatos morais

 

►Assim temos que a vida moral (a) – varia como experiência moral positiva e como negativa, incluindo a experiência dos preconceitos, das faltas, da maldade, da covardia, etc. como experiências negativas; (b) – varia com a variação das relações entre o que vale como Bem, o que se tem por objetivos, por fins, por modelos, regras, valores, ideais e suas representações intelectuais; (c) – varia com as variações das relações entre todos esses elementos e as condutas efetivas; (d) – varia com as variações das relações entre cálculos de valores e juízos de realidade relativos à resistência e à encarnação desses mesmos valores; (e) – varia com as variações das relações entre critérios morais e inclinações naturais (coletivas e individuais) – relações em que ambos os termos podem caminhar no mesmo sentido ou em sentido contrário (não há oposição necessária entre critérios morais e inclinações naturais); (f) – varia com as variações das relações de diferenciação e de conjunção da própria experiência moral com as outras obras de civilização, em particular com a religião, o direito, a arte e o conhecimento; (g) – varia com as variações das relações entre os diferentes gêneros da vida moral, suas acentuações, eficácia e importância.

A obtenção desses resultados compondo a variabilidade da experiência moral, só é possível de alcançar mediante a aplicação do conceito sociológico de atitudes morais [6].

Vale dizer: a definição sociológica dos fatos morais oferecida pelos continuadores de Durkheim, notadamente Georges Gurvitch, não só põe em foco como mencionado a experiência, mas também põe em relevo na vida moral como apego e sentimento de pertença aos grupos sociais tratar-se de um conteúdo objeto de aprovação ou desaprovação (passa como disse pelo nível simbólico), cujo caráter desinteressado é seu traço distintivo essencial.  

Ao assinalar que se trata de uma teoria dinâmica que implica a história, mas não depende da história a questão da percepção adquire sem dúvida alta relevância. Daí o aproveitamento original que a sociologia tira da Gestaltheorie.

Com efeito, tomando em consideração que o processo perceptivo mais simples implica elementos estruturais fundamentais (Gestalten) que antecipam a capacidade do homem para isolar relações ou considerá-las em sentido abstrato, e tirando dessa proposição sumular da Gestalttheorie a noção de ambiências em configurações, Gurvitch definirá os fatos morais como atitudes coletivas e individuais (isto é, ambiências em configurações ou Gestalten coletivas), concebidas como aspectos da realidade social por serem inspiradas pela experiência de uma luta contra todos os obstáculos que se opõem ao esforço humano, luta reconhecida como manifestação digna de aprovação desinteressada.  (Cf. Lumier, Jacob (J.): "Cultura e Consciência Coletiva-2", pdf. 169 págs. dezembro 2007 - Maio 2009, web da OEI, págs. 77 sq. http://www.oei.es/cienciayuniversidad/spip.php?article388 )

São as atitudes morais que integram os resultados da pesquisa sobre a variabilidade nos quadros sociais a que pertencem, e desta maneira permitem chegar à mencionada definição operativa dos fatos morais, como objetos do estudo sociológico relativista e empirista.

Nunca é demais insistir que, embora as atitudes e os fatos morais impliquem a tomada de consciência, o estudo sociológico efetua-se sem adotar uma doutrina filosófica da consciência moral, nem atribuir aos fatos morais uma origem histórica [7]·

Portanto, há uma análise prévia das atitudes como fatos sociais, isto é, como vias às quais penetrará a experiência moral. Esta as torna, então, ambiências sociais inspiradas justamente pela experiência de uma luta contra todos os obstáculos que se opõem ao esforço humano, luta digna de aprovação desinteressada, conforme a definição mencionada. 

 

 

Créditos de Durkheim

 

Nessa definição dos fatos morais se toma emprestado a Durkheim o seguinte: (a) – o papel indispensável da afetividade coletiva para a funcionalidade dos valores ideais (efetivando a atração do desejável) e (b) – a intuição de que a consciência é aberta às influências do ambiente – Durkheim concebe a consciência coletiva como intrinsecamente relacionada ao elemento flutuante, não estruturado, que designava "solidariedade de fato" (aí compreendendo as manifestações da sociabilidade).

Para seus continuadores, a insuficiência das orientações de Durkheim quanto ao problema da consciência coletiva (por ele equivocadamente identificada ao Bem supremo, como disse) que ele próprio introduziu na sociologia do Século XX está em sua falta de relativismo científico, ao ignorar que a importância dos níveis em profundidade da realidade social é variável segundo cada tipo de sociedade global, cada tipo de agrupamento social e segundo os diferentes Nós.

Compreendendo os conjuntos do psiquismo (vida mental consciente, subconsciente, infraconsciente e inconsciente) e da vida humana e social com sua realidade social e sua realidade histórica, a consciência coletiva deve ser estudada nos seguintes patamares assinalados por Gurvitch:

 (a) – não só nas suas manifestações na base morfológica da sociedade que inclui as infra-estruturas, recursos, instrumentos (se estudam as amplitudes concretas, em que se imbricam os objetos de conhecimento do mundo exterior, já mencionadas);

(b) – nas condutas organizadas e regulares, nos modelos (cristalizados ou mais ligados ao espontaneísmo), signos, atitudes, funções sociais, símbolos, idéias, valores e ideais coletivos, obras de civilização (arte, religião, conhecimento, direito, moral, educação);

(c) – principalmente nas estruturas e nos fenômenos não-estruturais como as formas de sociabilidade (Massa, Comunidade, Comunhão);

(d) – igualmente em si própria, em suas manifestações concretas em os Nós, já que a consciência coletiva não se realiza inteiramente em qualquer desses elementos e  pode extravasá-los em expressões imprevisíveis, inesperadas e até surpreendentes.  

A realidade dos níveis culturais na vida coletiva - níveis simbólicos e significativos, as idéias, os valores e os ideais - põem em relevo que a consciência coletiva os apreende, portanto uma consciência situada no ser, intuitiva e capaz de se multiplicar em um mesmo quadro social.

Melhor ainda, em sua autonomia, o mundo cultural com seus valores que aspiram à validade só pode ser apreendido por via de consciência coletiva.  Por sua vez, a apreensão por via de consciência coletiva é possível graças ao fato de que essa consciência é capaz de se abrir, ultrapassando as suas crenças e assimilando as novas influências do ambiente social, e como foi dito é capaz de se multiplicar no mesmo quadro social.

Enfim, da mesma maneira em que não há comunicação sem o psiquismo coletivo, decorre das pesquisas empíricas que os símbolos sociais para servirem de base à comunicação universal devem ter para todas as consciências individuais o mesmo significado (cuja autonomia em relação aos significantes é constatada no fato de que as coisas mudam de significado) pressupondo em modo realista uma união, uma fusão parcial das consciências anterior a qualquer comunicação simbólica. Tal a efetividade irredutível da consciência coletiva.

 

Moralidade real

 

Mas não é tudo. O aspecto do simbolismo tem um alcance específico na sociologia da vida moral. Bom durkheimiano, Gurvitch não deixa passar em silêncio a recomendação de seu mestre destacando a indispensabilidade do símbolo que possibilita a observação do fato moral: “para poder estudar a realidade moral é indispensável determinar previamente em que consiste o fato moral, porque, para poder observá-lo, ainda precisamos saber o símbolo que o representa” [8]·

Recomendação essa que Gurvitch levará em conta em sua definição do fato moral a partir da noção sociológica de atitudes coletivas, na qual definirá como visto acima a própria sociologia da vida moral.

Com efeito, será em razão do fato de que as atitudes morais constituem um setor da realidade social que no dizer de Gurvitch a explicação sociológica consiste no estabelecimento ou de correlações funcionais ou de regularidades tendenciais, assim como consiste em integração no conjunto do tipo social e às vezes na formulação de leis de probabilidade.

Em conseqüência, e na medida mesma em que são constatadas como um setor da realidade social, logo indispensáveis na formação das estruturas, pode-se admitir na análise da vida moral em um quadro social preciso que, além da atitude moral favorecida, existem outras atitudes que não se manifestam.

Não reduzida ao simbolismo que a representa (incluindo neste o discurso e os demais símbolos sociais da sua luta), a moralidade real é observada na hierarquia variável dos seus gêneros e formas.

Cabe lembrar, para exemplificar, que a classe camponesa (paysannerie) favorece habitualmente uma atitude moral tradicionalista; que a classe burguesa favorece uma atitude moral finalista; as classes médias uma atitude moral baseando-se no dever; e a classe proletária, por sua vez, favorece uma atitude moral fundando-se na aspiração e na criação.

Todavia isto não significa que nessas classes deixem de haver outras atitudes morais que não se manifestam. Quer dizer, entre esses quadros sociais e as atitudes morais não existe qualquer relação de causa e efeito (se existisse tornaria ilusória toda a moralidade).

Com essas observações considerando as atitudes morais como um setor da realidade social (o que é válido também para o conhecimento) e afirmando uma orientação preliminar à sua definição de sociologia da vida moral, Gurvitch exclui que a explicação sociológica tenha alguma coisa a ver com o problema da justificação das atitudes morais: se as atitudes são ficções, projeções, epifenômenos – afirmações estas que dependem da filosofia.

Por contra, para a sociologia há uma competição entre diferentes gêneros de atitudes morais, bem como, no interior dos mesmos, há conflitos entre as diferentes formas da moralidade real.

 

 

 

Sistemas de moralidade

 

Quer dizer, a moralidade real, não reduzida ao símbolo que a representa, é observada na hierarquia variável dos seus gêneros e formas, isto é, nos sistemas de moralidade real ou sistemas das atitudes morais efetivas, que correspondem em particular aos tipos de estruturas globais (e muitas vezes aos tipos de estruturas parciais). 

Daí, todos os tipos de estruturas sociais têm tendência a favorecer não um único gênero ou, no interior deste, uma só forma da vida moral, mas há toda uma hierarquia de gêneros e formas.

O sistema de moralidade desempenha um papel não só na estruturação das sociedades globais, mas também na estruturação dos agrupamentos sociais particulares (incluindo aí as classes sociais).

Em sua definição da sociologia da vida moral acima enunciada Gurvitch põe em relevo duas linhas de estudo complementares, acentuando as correlações funcionais e a pesquisa (a) – das variações das relações da moralidade com as outras regulamentações sociais, (b) – da justificação ideológica, (c) - da gênese da vida moral.

Desta maneira, antes de apresentar a fórmula de sua definição descritiva da sociologia da vida moral, serão distinguidos oito gêneros da vida moral real e seis dicotomias das formas da moralidade real.

Note-se que no termo gênero da vida moral real, as atitudes coletivas são abordadas como incluindo tudo o que implícita ou explicitamente elas contêm em conjunto, como Gestalt coletiva.

Aliás, ao classificar em maneira descritiva as atitudes coletivas segundo o conjunto de sua orientação para um ascendente moral exigindo um esforço digno de aprovação desinteressada Gurvitch é durkheimiano como foi dito por manter a característica do ascendente moral (afetividade coletiva) como critério fundamental do quadro social [9], mas ultrapassa seu mestre ao afirmar a simples exigência de um esforço digno como princípio verificável e não a obrigação durkheimiana que lembra o subjetivismo exacerbado do imperativo kantiano.

A classificação dos oito gêneros da vida moral real diferenciando-se no conjunto da orientação das atitudes coletivas para um ascendente moral exigindo um esforço digno de aprovação desinteressada é então a seguinte:

(1) – a moralidade tradicional;

(2) – a moralidade finalista, em particular utilitária;

(3) – a moralidade das virtudes;

(4) – a moralidade dos juízos preestabelecidos;

(5) – a moralidade imperativa;

(6) – a moralidade das imagens simbólicas ideais;

(7) – a moralidade de aspiração;

(8) – a moralidade de ação e criação. 

Quanto ao termo de “formas da moralidade real”, o sociólogo designa as tonalidades das atitudes morais que intervêm no modo de apreender ou aplicar o ascendente moral, para o qual se orientam.

As seis dicotomias compondo essas formas variáveis da moralidade são as acentuações que manifestam as flutuações intensas dessas formas no seio de cada gênero da vida moral.

São as seguintes:

(1) – a moralidade mística e a moralidade racional (sendo a moralidade religiosa e a laica suas manifestações secundárias);

(2) – a moralidade intuitiva e a moralidade reflexiva;

(3) – a moralidade rigorista e a moralidade dos dons naturais;

(4) – a moralidade que se amplia e a moralidade que se circunscreve;

(5) – a moralidade firmemente respeitada e a moralidade em declínio;

(6) – a moralidade coletiva e a moralidade individual.

Enfim, o termo sistema da vida moral é definido como designando as hierarquias particulares dos gêneros de vida moral e no interior destes as acentuações das formas da moralidade, correspondendo ambas aos tipos dos quadros sociais.

Neste ponto, podemos então observar duas linhas de estudo complementares na definição da sociologia da vida moral, seguintes:

 Primeira linha: o estudo das correlações funcionais entre gênero, formas, sistemas de atitudes morais, por um lado, e por outro lado os tipos de quadros sociais, compreendendo as sociedades globais, as classes sociais, os agrupamentos sociais particulares, as manifestações de sociabilidade;

Segunda linha: a investigação (a) – das variações das relações da moralidade com as outras regulamentações sociais e obras de civilização; (b) – das formas de justificação ideológica por meio de doutrinas; (c) – finalmente, a investigação da gênese da vida moral e seus determinismos específicos.

 

Função da vida moral nas sociedades

 

Em sociologia trata-se da vida moral efetiva, isto é, de uma regulamentação ou controle social sempre particular.

O estudo das correlações funcionais que se efetua inicialmente pelo cotejo dos gêneros e formas das atitudes morais com os tipos de quadros sociais exige a atenção do sociólogo para a questão prévia de saber quais dentre os gêneros e formas particulares podem ser referenciadas no tipo microssocial, no tipo grupal ou no tipo global que se estuda, haja vista em sociologia tratar-se da vida moral efetiva, isto é, de uma regulamentação ou controle social sempre particular e, portanto exigindo essa seleção e adequação prévias à descrição em que o gênero de vida moral se especifica em realidade.

Na seqüência dos procedimentos desse estudo das correlações funcionais Gurvitch dis-tingue o seguinte: (a) – que seja constatada a ordem em que estão colocadas esses gêne-ros da vida moral referenciáveis, isto é, o sistema de vida moral que constituem entre si e, (b) – sendo possível verificar a correspondência de um sistema diferente para cada tipo de estrutura global ou parcial, (c) – será então estabelecida a correlação funcional entre es-ses sistemas e os tipos de estruturas – notando-se com ênfase que o estabelecimento dessa correlação funcional se alcança sem que surja o problema da causalidade.

          Mas não é tudo. Essa possibilidade de estabelecer a explicação por correlações funcio-nais sem discutir o problema da causalidade merece destaque: é o procedimento privile-giado da sociologia da vida moral e se aplica igualmente para verificar a acentuação das formas da vida moral – sempre no interior dos gêneros morais – em função dos quadros sociais.

Gurvitch nos dá alguns exemplos a respeito disso. Lembra-nos as variações da morali-dade imperativa que (a) – tanto pode tomar uma forma racional ou mística quanto uma forma intuitiva ou reflexiva; que (b) – pode ampliar-se ou circunscrever-se; (c) – pode ser aceite ou não – variações estas que são válidas igualmente para a moralidade tradicional, para a moralidade das imagens simbólicas ideais (que é a moralidade propriamente ideológica) e ainda para a maior parte dos outros gêneros de atitudes morais.

Em face dessas constatações, Gurvitch nota a exigência para o sociólogo da vida moral que terá de novo que buscar as correlações funcionais dessas variações com os quadros sociais.

Porém, devemos dar muita ênfase a este outro domínio da sociologia da vida moral – já destacado na segunda linha de estudo acima discriminada – cuja análise não exige tampouco recurso direto à causalidade e que diz respeito à comparação da importância da função da vida moral, isto é, a análise da relação entre as atitudes morais e os outros gêneros de regulamentações sociais.

Assim se constata que a função da vida moral é muito mais importante em certos tipos de sociedades ou de grupos do que em outros.

Vale dizer, enquanto nas cidades e impérios antigos a arte, o conhecimento e o direito predominavam sobre a vida moral, esta ocupava o primeiro lugar na sociedade patriarcal e o terceiro lugar na sociedade feudal, e se a vida moral conquistou certa supremacia na época das democracias liberais, foi relegada para último plano pelo capitalismo organizado.

Quanto à investigação das formas de justificação ideológica por meio de doutrinas, que constitui igualmente domínio da sociologia da vida moral, tem lugar uma disciplina específica que Gurvitch designará sociologia das doutrinas ou das filosofias morais.

Trata-se de examinar a hipótese de que algumas das filosofias morais possam revelar-se como formas dogmáticas (ou axiomáticas) de justificar e sublimar uma situação de fato encontrada no sistema das atitudes morais em vigor em certo tipo de estrutura social.

Nota-se, no entanto que essa linha de pesquisa não implica em tomar como impossível uma filosofia moral não dogmática e não ideológica.

Para Gurvitch, cabe aos filósofos encontrá-la sem esquecer a variabilidade dos sistemas da vida moral evidenciada pelos sociólogos.

Em sua análise, observando os casos privilegiados, nosso autor sugere que as seguintes doutrinas morais poderiam corresponder às atitudes morais existentes em certos tipos de estruturas globais: (a) – as doutrinas do bem supremo, do dever, das virtudes; (b) – as do rigorismo moral, a doutrina dos dons naturais, as doutrinas vitalistas, as racionalistas, as místicas, as sentimentais; (c) – as morais contemplativas e as morais de ação; (d) – as morais individualistas. 

Quanto à última tarefa da sociologia da vida moral compreendida na definição-programa de Gurvitch, vimos destacar-se a linha de pesquisa em que a explicação causal poderia intervir.

 

Os determinismos da vida moral nas superestruturas

 

Trata-se da pesquisa genética da vida moral, que nosso autor distingue nas seguintes orientações: (1) – o estudo das origens religiosas, das origens mágicas, das origens jurídicas, das origens cognitivas da vida moral; (2) – o estabelecimento dos determinismos de transformação da vida moral nos diferentes tipos de agrupamentos, classes, sociedades globais; (3) – a pesquisa dos determinismos da ação desempenhada pela vida moral sobre os demais aspectos superestruturais de conjunto do todo social.

Nada obstante, Gurvitch entendeu que só o estudo das correlações funcionais entre os gêneros, formas e sistemas da vida moral e os quadros sociais de que fazem parte podia ser empreendido com resultados positivos e satisfatórios.

O desenvolvimento da sociologia da vida moral à época (anos de 1960) ainda era muito reduzido e a disciplina insuficientemente amadurecida para que todos os problemas enunciados fossem então abordados.

Por esta razão, encontramos em suas obras como vimos somente (a) – suas exposições tornando precisos inicialmente os gêneros e formas da vida moral mediante o procedimento metodológico de colocá-los de novo nos fenômenos sociais totais correspondentes; (b) – suas exposições estudando como pontos de referência as manifestações dos quadros microssociais, grupais e globais na vida moral; (c) – suas exposições sobre as correlações funcionais entre as estruturas sociais globais e os sistemas de moralidade real.        

 

 

O estudo da vida moral da classe camponesa

 

Mas não é tudo. No sentido da pesquisa dos determinismos da ação da vida moral sobre os outros aspectos superestruturais do fenômeno social cabe anotar para concluir, algumas observações sobre a forma de vida da classe camponesa (paysannerie).

Como assinalado acima, diferente da classe burguesa que favorece uma atitude moral finalista; das classes médias com sua atitude moral baseando-se no dever; e da classe proletária cuja atitude moral funda-se na aspiração e na criação, a classe camponesa favorece habitualmente uma atitude moral tradicionalista.

O alcance determinístico dessa moral tradicionalista campesina, portanto atualizada nas suas manifestações particulares, examina-se em correlação com uma tendência do psiquismo coletivo refratária à modernização e ao ethos da máquina e da racionalização capitalista, impondo-se o apego ao solo histórico antigo como elemento ancestral.

Neste sentido o que sobressai é a presença histórica da colossal insurgência campesina dos séculos XV e XVI estabelecendo o quadro autêntico da pesquisa sociológica dos determinismos da ação da vida moral da classe camponesa sobre os outros aspectos superestruturais. Podemos encontrar os elementos fundamentais dessa pesquisa em alguns trabalhos do célebre filósofo e sociólogo do século XX Ernst Bloch (1885-1977) [10].

 

O Psiquismo refratário à modernização

 

O problema crítico da cultura tradicional no caso alemão é saber a que se deve o arraigamento obstinado do campesinato germânico (cujo tempo social mostra-se bem retrasado em relação à paysannerie típica, de origem francesa), como espécie social com lastro na ambiência do gótico tardio legado dos séculos XV e XVI: uma ambiência bem reconhecida nas formas góticas dos mobiliários, solares e mansões rústicas.

Incluindo nesses objetos as imagens formadas de sonhos passados, o psiquismo refratário à modernização que Ernst Bloch ali descreve sob a noção de não-contemporaneidade liga-se à constatação de que as formas passadas ou pré-capitalistas jamais tornaram em fatos realizados os conteúdos visados do solar, do solo, dos "de baixo", de sorte que esses focos do tradicional na cultura já guardam desde o começo a qualidade de intenções insatisfeitas.

 Notando que estas intenções insatisfeitas passam ao longo da história por contradições veladas serão as mesmas examinadas para além da psicologia representacional, como conteúdos intencionais não ainda trazidos à luz do passado na realidade histórica das superestruturas.

Em alternativa à análise weberiana de "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" [11] e situando-se não sob a mentalidade de acumulação capitalista, mas no horizonte da marcha do gótico tardio, com percepção da desagregação dos valores cavalheirescos feudais em detrimento da pessoa dos camponeses, Ernst Bloch encontrará em sua abordagem concreta uma profunda ambigüidade e certa complementaridade no processus de abertura do mundo moderno, acentuadas com a obra devastadora da revolução francesa ao fazer desmoronar por completo a superestrutura das relações econômicas solidárias do passado remoto (a superestrutura patriarcal correspondente ao antigo Sacro Império Romano Germânico).

Com essa ambigüidade e esse fragoroso desmoronamento aflorou na abertura do mundo moderno não só (a) – que a burguesia afirmou a vontade individual ao lograr um poder político e (b) – que esta mesma burguesia, em câmbio, permaneceu debilitada inclusive no aspecto de crença e reconhecimento público do seu modo de ser competitivo; mas também (c) – que, nas regiões do mais tenaz reduto do medievo como a Alemanha, esse Eu externamente liberado e a ascensão capitalista levaram não ao poder político, mas ao fracasso da vontade individual e à ausência de unidade econômica combinando-se à falta no país de maturidade política e à inexistência de uma entidade jurídica. 

 

 

O determinismo da moral tradicionalista camponesa

 

Quando se estuda a luta dos campesinos germânicos contra a modernização capitalista sem reduzi-la ao simbolismo que a representa (no caso, sem reduzi-la aos discursos e simbolismos das suas crenças milenaristas, suas lendas imperiais, suas heresias cristãs, místicas astrológicas, comunismo, etc.) e se busca descrever o determinismo da ação dessa luta como forma de vida moral, descobre-se a ação tradicionalista camponesa produzindo a persistência da forma gótica.

Quando por sua vez alguém aprofunda em nível do psiquismo coletivo o estudo dessa luta dos campesinos e a examina como afirmação de um complexo apego ao solo histórico do gótico tardio (séculos XV e XVI), notará que a pesquisa dos determinismos da ação desempenhada pela vida moral sobre os outros aspectos superestruturais do fenômeno social passa pela descrição da eficácia dos sonhos passados em nível das superestruturas tal como a sugestão de Ernst Bloch.

Assinalando o rastro das "imagens-aspiração" pelas quais adquirem significação humana os objetos do complexo apego e arraigamento campesino, esse autor descobre aquelas imagens-aspiração no substrato mesmo dos objetos do mundo exterior (na forma gótica das mansões, dos móveis e demais objetos e utensílios dos costumes), portanto como princípio de função utópica, qualificando-as por essa razão como "atividade onírica in-dormida".  

Todavia, não se pensa que os conhecimentos sociológicos de infra-estrutura restam desatendidos na abordagem pelo psiquismo coletivo das "imagens-aspiração" do gótico tardio.

A análise do campesinato germânico tem conta daqueles bem conhecidos aspectos sociológicos relevantes da sobrevivência do modo de produção pré-capitalista, tais como: ser a "paysannerie" uma classe possuidora dos próprios meios de produção; utilizar ela as máquinas agrícolas, porém fazendo-o no quadro antigo extensivo à herdade, ao solar e à terra de semeadura ao seu redor; o desconhecimento em tal ambiência tradicional da figura do fabricante capaz de introduzir o ofício de tecer mecânico e as atividades manufatureiras correspondentes; neutralização das oposições econômicas entre explorados e exploradores devido ao desempenho do papel de patriarca ativo pelo paysan rico apesar das diferentes relações de propriedade, etc.

Se estes aspectos têm validade para acentuar ou reforçar a tendência refratária à modernização não definem por si sós o conteúdo não-contemporâneo autêntico do campesinato germânico, nem explicam completamente o sentimento dos campesinos alemães em representarem um estamento em permanência relativamente unido.

Em suma, o arraigamento obstinado que levou o campesinato germânico à insurgência colossal dos séculos XV e XVI ultrapassa os aspectos sociológicos relevantes da sobrevivência do modo de produção pré-capitalista e deve ser compreendido a luz do determinismo da vida moral, como se afirmando no exterior da propriedade dos meios de produção pré-capitalistas e como originado da própria matéria que os campesinos trabalham; a matéria que os entretém e os alimenta em modo imediato.

No dizer de Ernst Bloch, tal arraigamento deve ser compreendido como parte do seu próprio corpo, a saber: os campesinos das regiões mais vinculadas ao medievo são colados no solo histórico antigo e no ciclo das estações.

Tal o conteúdo autenticamente não-contemporâneo da tendência refratária à modernização na classe camponesa germânica, que servirá inclusive como referência para explicar a persistência da forma gótica.

Ademais de uma mentalidade cheia de uma velha desconfiança afirmada no idiotismo, no embotamento, na tradição do costumeiro e da fé; assinalam o senso de ser ligado no solo histórico, o ser ligado na herdade e no solar rústico que, acrescido do individualismo do "campesino" germânico, mostram a persistência da forma gótica nas mansões, nos móveis e nos costumes como realidade da cultura histórica na abertura para o mundo moderno[12] .

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Notas Complementares

(Nota 01)

O estudo sociológico efetua-se sem adotar uma doutrina filosófica da consciência moral, nem atribuir aos fatos morais uma origem histórica.

A grande tentação que espreita a ciência da história é a “predição do passado”, a qual se converte comumente em  projeção dessa predição no futuro.

Linhas para uma Sociologia do Saber Histórico

 

     ► Para apreciar a diferença entre tempo sociológico e tempo histórico é preciso distinguir a realidade estudada, o método aplicado a esse estudo e o objeto que resulta da conjugação de realidade e método.

      O caráter histórico de uma realidade social é múltiplo, havendo graus de percepção de que a ação humana concentrada pode mudar as estruturas e permitir revoltas contra a tradição (graus de prometeísmo). 

      Expresso na historiografia o saber histórico se concentra exclusivamente sobre a realidade histórica, acentuando muito o primado das sociedades globais como sujeitos “fazendo história”.

      Por sua vez, a sociologia salienta “o complexo jogo” entre as escalas do social que se pressupõem uma a outra, quer dizer: procura confrontar a realidade histórica com “os planos sociais não-históricos ou pouco históricos”, como o são os elementos microssociais e grupais, respectivamente. 

      Sobressai que as manifestações prometeicas da realidade social são as que menos se prestam à unificação, registrando-se aqui um segundo foco de tensão com os historiadores, já que estes tendem para uma unificação muito intensa da realidade social, enquanto o sociólogo reconhece a resistência da realidade histórica à unificação, facilmente verificada no conflito de versões.  Por isso o sociólogo busca acentuar a diferenciação e a diversificação, que considera muito ativada pelos planos sociais em competição. 

      O caráter muito mais continuísta do método histórico se observa na medida em que a história, como ciência, “é conduzida a vedar as rupturas, a lançar pontes entre diversas estruturas", o que é uma manifestação do pensamento ideológico (Ver, Gurvitch, Georges: "A Vocação Atual da Sociologia, vol.II”).

►Ø      Portanto, será mediante a crítica do continuísmo do método histórico que se apontam algumas direções para uma sociologia do saber histórico.

      O historiador busca “a luz unitária” que é do saber histórico, mas que não se encontra na realidade histórica.

      O saber histórico se beneficia do tempo já decorrido, mas reconstruído e tornado presente, de tal sorte que a explicação pela causalidade histórica singular intensifica a singularidade, estreitando as relações entre causa e efeito, tornando-as mais contínuas e por isso mais certas.

      Daí a razão da crença exagerada na força do determinismo histórico.

      Por contra, observando a realidade histórica, Gurvitch assinala que a multiplicidade dos tempos especificamente sociais é aqui acentuada por suas ligações com o prometeísmo. 

      Quer dizer, a realidade histórica dá privilégio ao tempo descompassado, ao tempo avançado sobre si mesmo, ao tempo de criação, seriamente limitados, todavia, pelo tempo de longa duração e o tempo em retardamento.

      No saber histórico, por sua vez, esses tempos históricos reais são reconstruídos segundo o pensamento ideológico do historiador, “quem é tentado a escolher alguns desses tempos em detrimento dos outros”.

      É por meio do saber histórico que as sociedades são arrastadas a reescrever sem cessar sua história, “sempre tornando o tempo passado simultaneamente presente e ideológico” (ib.ibidem). 

      Os tempos decorridos e restaurados pela história assim o são segundo “os critérios das sociedades, das classes ou dos grupos que são contemporâneos aos historiadores”. 

      A multiplicidade dos tempos que enfrenta o historiador, assim como sua “unificação exagerada”, não é tanto a da realidade histórica, mas a de “reconstruções variadas”.   

      Então, essa segunda multiplicidade e essa segunda unificação reduzem-se a interpretações múltiplas da continuidade dos tempos.  

      Pertencendo a diferentes sociedades, classes ou grupos, os historiadores não conseguem ressuscitar os tempos escoados senão à custa da projeção do seu presente no passado que eles estudam.

►Ø      Notam-se duas inferências:

     (a) - Que os historiadores não podem atingir essa projeção do seu presente no passado que estudam sem supor uma continuidade e uma unidade entre as diferentes escalas de tempos próprios às diversas sociedades;

      Decorrendo daí (b) - que a grande tentação que espreita a ciência da história é a “predição do passado”, a qual se verte comumente em projeção dessa predição no futuro.

      Quanto aos tempos sociais propriamente ditos, se encontram e se debatem nas diferentes camadas ou níveis em profundidade da realidade social estudada em sociologia e nas oposições entre os elementos não-estruturais, estruturáveis e estruturados

      O tempo social é caracterizado pelo máximo de significações humanas que nele se enxertam e pela sua extrema complexidade, levando à variabilidade particularmente intensa da hierarquia de tempos sociais.

      Há uma dialética levando ao esclarecimento do conceito de tempo e outra dialética levando ao esclarecimento do conceito de social:

      A primeira é a dialética entre sucessão e duração, continuidade e descontinuidade, instante e homogeneidade (a multiplicidade dos tempos, a escala dos determinismos e as realidades por eles regidas estão na mesma situação de intermediários entre os contrários complementares);

      A segunda é a dialética tridimensional, a dialética entre o microssocial, o grupal e o global, constituindo a dinâmica do fenômeno do todo social (fenômeno social total).

      No esforço das sociedades históricas para unificar os tempos sociais, a direção do tempo pode conduzir aos graus mais intensos da liberdade humana, que então comanda os determinismos sociológicos caso aquele esforço seja favorável à predominância (a) - do tempo em avanço sobre si mesmo, onde o futuro se torna presente; ou (b) - do tempo explosivo dissolvendo o presente na criação do futuro imediatamente transcendido (cf. “Determinismos Sociais e Liberdade Humana”; ver também “A Vocação Atual da Sociologia”, vol.II, já citada).

      Será a utilização dessa conceituação sociológica prévia dos tempos sociais pela análise que porá em relevo a realidade dos tempos, as maneiras de tomar consciência dessa realidade dos tempos e os esforços empregados nos quadros sociais estruturados a fim de dispor esses tempos numa escala hierarquizada e assim os dirigir. 

                         ***

Rio de Janeiro, Novembro de 2009

Jacob (J.) Lumier

http://www.ssfthinktank.org/profile/JacobJLumier
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[1] Segundo Elise Lowy, "la prise de conscience des dangers du productivisme s’amorce avec le concept d’éco-développement lancé par Ignacy Sachs au séminaire de Founex en Suisse en 1971, avec le Rapport Meadows du Club de Rome qui paraît en 1972, ou encore avec la Conférence des Nations Unies sur l’environnement tenue la même année à Stockholm".Cf. Petite histoire du productivisme, publié le jeudi 3 janvier 2008 na Web Les Verts  http://economie-social.lesverts.fr/spip.php?article281

[2] Note-se que o relativismo sociológico não incorre na dispersão dos critérios, mas elabora uma orientação probabilitária afirmando a variabilidade funcional, cuja complexidade, porém, decorre das funções dialéticas. Ver Gurvitch, Georges (1894-1965): “Dialectique et Sociologie”, Flammarion, Paris 1962, 312 pp., Col. Science. Op.Cit. 

[3] As unidades coletivas reais jamais se encontram em estado inerte e o "conceito" operativo mais elementar que dá conta dessa qualidade não-inerte é o de atitudes coletivas.

[4] GURVITCH, Georges (1894-1965): “A Vocação Actual da Sociologia - vol.I: na senda da sociologia diferencial”, tradução da  4ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1979, 587pp. (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1950).  A Vocação Actual da Sociologia –vol.II: antecedentes e perspectivas”, tradução da 3ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1986, 567 pp. (1ªedição em francês: Paris, PUF, 1957). “Tratado de Sociologia - vol.1", revisão: Alberto Ferreira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1964, 2ªedição corrigida (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1957). ”Tratado de Sociologia - Vol.2”, Revisão: Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto 1968, (1ªedição Em Francês: PUF, Paris, 1960). Op.Cit.

[5] Percepção coletiva de que a ação concentrada pode mudar as estruturas, o prometeísmo é qualidade em todos os tipos de sociedades históricas e sua aplicação em sociologia é indispensável para descrever a realidade histórica como setor privilegiado da realidade social, e desta forma evitar qualquer confusão com a filosofia da história. Ver Gurvitch, Georges (1894-1965): “Dialectique et Sociologie”, Flammarion, Paris 1962, 312 pp., Col. Science. Op.Cit.  

[6] Vimos anteriormente que a noção de Gestalt se inscreve na concepção mesma e na descrição das atitudes coletivas, em especial nas atitudes morais sendo possível a partir daí definir os fatos morais descritivamente e sem tomar posição filosófica precisa nem identificar-se a uma doutrina particular – mas, bem entendido, sem prescindir da colaboração da reflexão e da análise filosófica ou não-representacional para definir a especificidade do fato moral. 

[7] Sobre as relações entre o saber histórico e a sociologia ver a Nota 01 dentre as NOTAS COMPLEMENTARES no final deste artigo..

[8] Sentença de Durkheim in “Philosophie et Sociologie”, pág 49.

[9] Em sociologia e em consonância com a não-redução da moralidade real ao símbolo que a representa, a noção de quadro social da vida moral compreende as atitudes (coletivas morais) em vias de se fazer, suportes intencionais ou não-representativos verificados como tais em modo empírico: aspectos dos determinismos sociais das atitudes coletivas tomadas em conjunto como um nível de realidade social, ou "arranjos que levam a reagir, que levam as unidades coletivas reais (grupos e classes), os Nós no interior destas e as sociedades inteiras a reagirem de maneira comum, a conduzirem-se de certo modo e a assumirem papéis sociais particulares" (Cf.Gurvitch: "A Vocação Atual da Sociologia”-vol.1, pp.110sq).

[10] Cf. Bloch, Ernst: Thomas Münzer, Teólogo de la Revolución  ("Thomas Münzer als Theologe der Revolution", München 1921) Editorial Ciencia Nueva, Madrid, 1968. ; Cf. Bloch, Ernst: Héritage de ce Temps (Erbschaft dieser Zeit, Zürich, 1935), tradução de Jean Lacoste, Paris, Payot, 1978, 390 págs.

[11] Cf: Weber, Max (1864 –1920): L’Éthique protestante et l’esprit du capitalisme (Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus, 1905), Paris, Librairie Plon, 1964, 341 pages. Collection Recherches en Sciences humaines: série jaune.  

[12] Cf. Bloch, Ernst: Héritage de ce Temps (Erbschaft dieser Zeit, Zürich, 1935), op.cit. Ver: Lumier, Jacob (J.): "O Tradicional na Modernização: Leituras sobre Ernst Bloch", Internet, E-book pdf 130 págs., 2009, Web da OEI,  http://www.oei.es/cienciayuniversidad/spip.php?article277