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Em defesa do “modelo” do FSM

( Comentários ao texto “FSM: os desafios do altermundialismo pós-mobilizações”)

Texto de Mauri Cruz, de 08 de 2013 - TunisG3 contribution1-pt   

Chico Whitaker

Eu não diria tão peremptoriamente, como na primeira frase desse texto, “que o modelo (de FSM) iniciado em Porto Alegre em 2001 está esgotado”. Talvez as palavras “modelo” e “esgotado” não traduzam exatamente o pensamento do autor quanto à sempre necessária revisão do processo FSM. Mas considerando essas palavras e o sentido forte que tem, eu diria que, antes pelo contrário, o FSM ainda tem - na luta contra o neoliberalismo, seu objetivo declarado - uma longa caminhada à frente com seu atual “modelo”, que lhe é essencial. Mais ainda se considerarmos os questionamentos feitos, dentro da luta social, pela grande “novidade” de nossos tempos que são os chamados “novos movimentos sociais”.

Pode-se dizer que a forma organizativa que esses movimentos adotaram coincide exatamente com o que de mais inovador existe no “modelo” dos Fóruns Sociais: eles são encontros da sociedade civil abertos, horizontais (sem estruturas de comando, direção ou representação), construídos de baixo para cima (atividades auto organizadas), sem uma declaração final única que se pretenda orientadora, autônomos em relação a partidos e governos.

Rever o “modelo” do FSM significa “verticalizá-lo”? Não me parece ser essa a revisão pretendida. Mas, se for, ele se descaracterizará totalmente e perderá sentido para muitos de seus participantes, porque estará abandonando algo que se mostra muito necessário no mundo de hoje: a busca de uma nova cultura política. E é esse “modelo” que o torna um espaço especialmente acolhedor para os “novos movimentos sociais”. E será a entrada desses movimentos no processo FSM que poderá revigorar o seu “modelo”.

Vale lembrar que foi o respeito cuidadoso das opções que definem o “modelo” (explicitadas na Carta de Princípios do FSM) que assegurou o sucesso do FSM de 2013 na Tunísia; e que foi a negação de algumas dessas opções que levou ao esvaziamento do Fórum Social Europeu, aprisionado pelas forças políticas que queriam “orientar” os debates. Ou seja, se as inovações do processo FSM conseguem mas nem sempre levam à superação de todas as velhas práticas, essas inovações precisam ainda ser aprofundadas e consolidadas.

A busca de uma nova cultura política tem muito a ver com um dos principais questionamentos feitos pelos novos movimentos: o tipo de democracia em que vivemos (com seus sistemas de “representação”, sempre piramidais) e o “poder” (político e econômico) que nela se instala. Querem “democracia direta”, que é muito mais do que “democracia participativa”. Ou seja, não querem mais “participar” de decisões tomadas pelos poderes verticalizados dos governos e partidos, legitimando-os (assim como de organizações sociais que se burocratizaram, como sindicatos ou movimentos sociais mais diretivos). Eles contestam decisões tomadas por “representantes” que se instalam nesses poderes, e querem ter voz nos processos decisórios, de baixo para cima, autonomamente.

Ora, os “espaços” criados no processo do FSM ofereceram à sociedade civil a possibilidade (que não existia) de realizar encontros a nível mundial independentemente de partidos e governos e suas estruturas verticais de direção, de representação e de comando. Com isso – o que foi um dos seus grandes ganhos – o FSM conseguiu começar a “libertá-la”, por assim dizer”, dessas instituições, que até então monopolizavam a ação política (e controlavam a ação da sociedade civil). Assim, ela podia tornar-se um novo tipo de ator político de corpo inteiro, autônomo, caracterizado pela diversidade e pelo pluralismo. E foi o “modelo” do FSM que a protegeu (embora nem sempre...) da contaminação com as lutas internas pelo poder de comandar e dirigir, características dos partidos e governos. Convém portanto que ele continue a cumprir esse papel.

Mas esse novo tipo de ator político – uma sociedade civil horizontal e diversificada, sem estruturas dirigentes – precisa também “conversar” com as pirâmides de poder dos partidos e governos. Isto será tanto mais necessário quanto mais ela se fortalecer como ator político. Essa necessidade é colocada no texto que aqui comento. Mas sabemos quão frágil é ainda sua autonomia, e com que apetite partidos e governos aproveitarão as brechas que se abrirem para “penetrar” nos espaços do FSM e tentar controlá-lo e dirigi-lo (e com ele, de novo, a sociedade civil). Ou seja, também nesse aspecto o fortalecimento do “modelo” do FSM pode ajudar a que não se volte atrás.

Para tornar possível essa “conversa”, seria talvez muito útil uma outra inovação que não nasceu com o FSM mas foi extremamente valorizada no processo: a organização social em rede. Essa nova forma de se organizar é caracterizada exatamente pela horizontalidade, que é essencial ao “modelo” do Fórum e é particularmente adequada à “sociedade civil”: em vez de pretender “unificá-la”, reduzindo-a a “base” de estruturas piramidais, ela respeita sua heterogeneidade e até sua fragmentação. Tais características da sociedade civil não são na verdade um problema mas sim uma riqueza. Assim, para “ouvir” o que a sociedade civil tem a dizer, teríamos que utilizar mais plenamente os princípios de funcionamento das redes – valendo-nos inclusive das potencialidades abertas pela atual tecnologia de intercomunicação. Esses princípios seriam uteis também ao próprio processo do FSM, por exemplo no seu modo de decidir, internamente, sobre a organização dos Fóruns.

Sabemos por outro lado que o capital tenta criar o que facilita a vida das empresas (e aumenta seus lucros): num mercado de dimensão mundial, uma massa uniforme de consumidores, compradores insaciáveis e individualistas dos mesmos produtos, que por sua vez são produzidos “tratorando -se”, literalmente, a natureza e os seres humanos. Sabemos que nisso ele avançou muito (esperemos que nunca o consiga totalmente). Sua lógica está hoje inteiramente “globalizada”. São pouquíssimas as “ilhas” em que paradigmas econômicos e sociais não capitalistas tentam se afirmar, a duras penas (Cuba? Butão? territórios Zapatistas?). Até a China, último grande reduto “socialista”, teve que autodenominar seu sistema econômico de “socialismo de mercado”, para se relacionar comercialmente com o resto do mundo.

Ora, na perspectiva mais ampla da luta contra o neoliberalismo, as práticas experimentadas no “modelo” do FSM, estimulando a autonomia e respeitando a diversidade, vão no sentido exatamente inverso ao do capital. E se pode constatar, nos próprios Fóruns, que existe também a resistência da produção alternativa que atende a necessidades reais, a luta pelo respeito à natureza e aos trabalhadores, o esforço pelo consumo consciente e solidário. Fortalecer o “modelo” do FSM, que permite que tudo isso emerja e se interconecte, é portanto, em si mesma, uma forma de combater o poder do capital. 

Os novos movimentos sociais questionam também as estruturas tradicionais da própria sociedade civil, como os sindicatos e ONGs, em geral também piramidais em sua organização, assim como os “movimentos sociais” organizados verticalmente, com estruturas de direção e representação. Ora, com esses questionamentos eles nos levam a refletir sobre determinadas opções feitas na aplicação do “modelo” do FSM, ao longo do processo.  

No seu início pretendeu-se limitar a participação nos Fóruns a cidadãos e cidadãs “organizados” – isto é, a pessoas que participassem de algum tipo de organização social, como os sindicatos, ONGs e “movimentos sociais” então existentes. Naturalmente essa condição tinha que ser respeitada também no Comitê de “organização” dos Fóruns: seus membros “representavam” necessariamente tais organizações sociais.

A limitação quando à participação nos Fóruns foi imediatamente rompida pelos seus próprios participantes, já na sua primeira edição. Quatro quintos dos que vieram não “representavam” organizações nem eram por elas enviadas. Participavam a título pessoal. Pouco a pouco portanto essa limitação foi sendo abandonada, até desaparecer totalmente.

A questão que se coloca agora é portanto a da composição dos Comitês de Organização dos Fóruns Sociais - de uns tempos para cá denominados Comitês de “Facilitação” (nome mais adequado à nova cultura política em construção). Com os Fóruns necessariamente abertos aos participantes dos novos movimentos sociais, como esses movimentos podem se fazer presentes nesses Comitês?  De novo aqui a novidade organizacional das “redes” pode prestar serviço. E neste caso mais ainda as potencialidades abertas pela atual tecnologia de intercomunicação.

Hoje muitos consideram que a crise enfrentada pelo Conselho Internacional do FSM - constituído somente por organizações sociais que a ele enviam seus “representantes” – é devida à burocratização que o sistema de “representação” provoca. A solução que seja dada ao nível dos Comitês de Facilitação dos Fóruns pode talvez ajudar a resolver essa crise.

Outro aspecto muito contestado do “modelo” FSM é o de que seus encontros se reduzem a momentos de “reflexão” e “discussão”. Nessa perspectiva, ele estaria se esgotando porque se demonstra “incapaz” de reagir frente à gravidade e à urgência da ação. Mas ação sem reflexão (prévia ou concomitante) só leva a desastres e becos sem saída. E como o FSM não é um movimento, que age e faz (quem age e faz são os seus participantes e as organizações de que façam parte, autonomamente), ele passa a ser essencial exatamente como um “espaço” de discussão e reflexão (em que cabe tanto a denúncia como a proposição de ações), de que os movimentos podem dispor livremente. Sendo que não existem outros espaços desse tipo, abertos à diversidade que caracteriza a participação nos FSMs.  

Foi aliás da necessidade de “refletir” e “discutir”, que é sempre melhor quando tem focos precisos, que surgiu outra novidade do processo do FSM: a possibilidade de criar espaços de discussão específicos, em torno de objetivos particulares. São os Fóruns Sociais Temáticos, que se multiplicaram pelo mundo afora abrindo inúmeras novas pistas de luta. Em acréscimo, como não se pode resistir ao capital somente dentro de espaços “nacionais”, tais Fóruns Sociais (e até os “locais”) acabam sendo necessariamente abertos a uma participação internacional.

Em suma, em vez de dizer que o “modelo” FSM se “esgotou”, teríamos que dizer que ele “floresceu”. Mas que isto ainda se deu (de fato, só começou) somente dentro da sociedade civil. Ou seja, no contexto de uma luta contra uma economia que não é liberal (como se autodenomina) mas extremamente autoritária (até com o uso de armas) e submetida aos interesses do capital, os FSMs (com seu “modelo”) têm ainda muito a contribuir, para que consigamos tanto mudar nossas próprias estruturas na sociedade civil como derrubar as estruturas políticas e econômicas dominantes.

Mas não vou prolongar demais estas reflexões - ainda que hoje o que mais se faça é refletir para tentar entender o que está se passando com todas as mobilizações que sacodem o mundo...

Assim, para concluir, eu diria que, se dizemos que nosso Fórum Social de POA em janeiro de 2014 se inscreve no processo do FSM, temos que, em primeiro lugar, reafirmar claramente (sem medo), que ele serve para se discutir e não para agir (porque, como já disse acima, quem age não é o Fórum mas as pessoas e organizações que dele participam – e que podem fazê-lo até durante o próprio Fórum, mas não em nome dele). E, se dizemos que ele será Temático, temos que, em segundo lugar, definir com clareza qual é seu “tema”, na luta contra o capital.

Um exemplo de tema, só para animar a discussão: “as novas formas de resistência ao capital no mundo de hoje”. Um título que implicaria na necessária participação dos “novos movimentos sociais” e comportaria uma grande quantidade de subtítulos que agregassem a reflexão sobre a democracia (e nela os partidos políticos) e a economia, assim como as brechas que a crise vivida hoje pelo capital está nos abrindo para “criar” (uma vez que “resistir é criar”, como alguém já disse) o “outro mundo possível”, da democracia real e da justiça social.

 

24 de setembro de 2013