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blog em portugues de chico

Fórum Social Mundial – perspectivas possíun…s-chico-whitaker/veis – Chico Whitaker

Esta é a segunda parte de um texto mais longo“Reflexões: Brasil e Fórum Social Mundial”, escrito a pedido da revista Globalizations, da Finlândia, sobre as perspectivas do Fórum Social Mundial, em setembro/outubro de 2018, em pleno período das eleições que levaram Jair Bolsonaro à Presidência da Republica do Brasil. A primeira parte desse texto não podia portanto deixar de considerar o que estava acontecendo naquele momento em nosso país, nos preocupando a todos, e agora ainda mais. Mas naturalmente Globalizations só pode reter, para publicação, em inglês, a segunda parte desse texto, especificamente sobre o Fórum Social Mundial. E só agora o publicou, inicialmente, no link https://www.tandfonline.com/eprint/ETPT3PJAVUMNEMKB2DUM/full?target=10.1080/14747731.2019.1670957

Com o texto liberado para publicação, eu coloco neste blog a versão em português tanto dessa segunda parte como de sua 1a. parte, sob o titulo A experiência politica vivida no Brasil em 2018

E segue abaixo a 2a. parte do texto , com o titulo que lhe foi dado na publicação de Globalizations: “Fórum Social Mundial – perspectivas possíveis”.

Enquanto todo o descrito na primeira parte deste texto acontecia, não podiam senão arrefecer, pelo menos no Brasil, as divergências que sempre existiram no processo do Fórum Social Mundial. Ao começar a escrever este texto eu havia identificado algumas: sobre o caráter dos Fóruns de nível mundial e o modo de organizá-los, sobre o conteúdo da Carta de Princípios do FSM – especialmente onde prescreve que os Fóruns não devem ter uma Declaração Final – sobre a natureza e o papel do seu Conselho Internacional – CI e sobre a possibilidade desse Conselho ter posicionamentos políticos enquanto Conselho.

Elas vinham sendo discutidas civilizadamente, em nossos circuitos de intercomunicação. E desde talvez a sétima edição do FSM, no Quênia, em todas as suas edições houve pelo menos um seminário ou debate sobre o futuro do FSM, por iniciativa de participantes também finlandeses. Um ou outro artigo mais assertivo ganhou uma difusão maior, como o de um membro do Conselho que afirmou, para os leitores de uma revista brasileira, que no final do Fórum Social Mundial a ser realizado em março de 2018, em Salvador da Bahia, a Carta de Princípios do FSM seria enfim modificada.

Essas discussões foram se tornando repetitivas e cansativas, quase como diálogos de surdos, mas ganharam maior intensidade em reunião do Conselho realizada em Montreal, Canada, em agosto de 2016 e em Porto Alegre em janeiro de 2017, quando o CI decidiu que Salvador da Bahia, no Brasil, poderia sediar o Fórum Social Mundial de 2018. Mas com o sucesso desse Fórum tudo retomou o ritmo anterior. E a falta efetiva de consenso sobre revisões na Carta levou a que, ainda em Salvador, essa questão fosse postergada sem prazo de retomada.

Na verdade, o que é muitas vezes explicitado, como um sentimento geral, é a necessidade de não enfraquecer e menos ainda fazer desaparecer um espaço como o FSM, que se tornou único no mundo, no qual as organizações que querem construir o “outro mundo possível” podem se encontrar, na busca de caminhos de resistência e construção de alternativas. Assim é que, teimosamente, la nave va – recuperando o titulo de famoso filme italiano – navegando num processo mais amplo do que as edições dos Fóruns Mundiais cada dois anos. Estes, por duas vezes ganharam novo impulso em Túnis, em 2013, em tempos de Primavera Árabe, e agora em 2018 em Salvador. Mas ao mesmo tempo multiplicaram-se Fóruns Regionais, Nacionais e Locais, alguns dos quais persistem, assim como surgiram ultimamente os Fóruns Sociais Temáticos, até de nível mundial.

Torna-se necessário portanto continuar buscando a superação de divergências que podem dividir. Até porque é conhecida a recorrência das divisões na esquerda, que é onde se situa o FSM no espectro politico. E é mesmo espantoso que o FSM chegue aos 18 anos de vida sem ser vitimado por essa tendência, embora vários de seus fundadores tenham se afastado da organização dos Fóruns e por três vezes tenham sido organizados Fóruns Sociais Mundiais paralelos àqueles em realização.

Não podemos esquecer que o FSM já conheceu momentos gloriosos, com o do Fórum na Índia em 2004, com 120.000 participantes e, em seguida, dois Fóruns com 150.000 participantes cada um, em Porto Alegre em 2005 e em Belém do Pará em 2009. Mas seu poder de atração de fato tem diminuído. Ele lançou uma mensagem de esperança que repercutiu em todo o mundo – “um outro mundo é possível” – onze anos depois do desmoronamento da experiência socialista soviética com a queda do muro de Berlim. Mas sumiu do radar dos grandes meios de comunicação de massa (especialmente depois que suas datas de realização não mais coincidiram com as do Fórum Econômico Mundial de Davos, uma escolha proposital que obrigava a grande imprensa a dar atenção ao FSM como contraponto a Davos). O Conselho Internacional, por sua vez, chegou a ter representantes de mais de 150 organizações, mas hoje pouco mais de 50 ainda se consideram seus membros. O que explica ter surgido mais de uma proposta de extingui-lo e recompô-lo, segundo novos critérios.


O nó górdio das divergências

Analisando as divergências me parece que elas decorrem de visões antagônicas do que é ou pode ser um Fórum Social Mundial, apesar de todos terem o socialismo como mesma referência utópica: deveria ser um Fórum-espaço-aberto ou um Fórum-movimento? É uma diferença de visão que existiu desde o primeiro FSM.

Se fosse escolhida a opção Fórum-espaço-aberto ele teria que ser um lugar de informação mutua e debate sobre as lutas em curso pela superação do capitalismo neoliberal, a serviço dessas lutas, alimentando-as pelo aprofundamento da reflexão e pela criação de novas articulações a serem concretizadas após os Fóruns ou fora deles.

Se fosse escolhida a opção fórum-movimento ele teria que organizar seus participantes em ações visando objetivos bem definidos, com prioridades e estratégias para essas ações, claros processos decisórios e uma adequada distribuição de responsabilidades, como um bom movimento.

No primeiro caso o Fórum não seria um ator politico em si mas um apoio ao ator ou atores políticos de fato, que seriam as próprias organizações que viessem a seus encontros. No segundo caso ele teria que assumir um papel próprio como ator politico, entre todos os outros que atuam no mundo, procurando contribuir da forma mais eficaz possível para a luta da humanidade pelo “outro mundo possível”.

Ora, foi a primeira opção que prevaleceu na organização dos Fóruns Sociais Mundiais.

Mas de fato ela não era unânime entre os membros do Comitê de Organização brasileiro e menos ainda entre os muitos militantes e intelectuais que acompanhavam e ajudavam, uns mais de perto outros menos, o trabalho do Comitê. Por isso mesmo em todos os Fóruns a divergência ressurgia e se exprimia de diferentes formas.

Uma delas foi a das “Assembleias dos Movimentos Sociais”, uma atividade que se repetia em todos os Fóruns, para a qual eram convidados todos os seus participantes. Dentro da visão de Fórum-movimento, seus organizadores propunham orientações e prioridades de luta, enunciadas como uma Declaração Final do Fórum. E sempre buscavam – e conseguiam – um espaço especial ao final de cada Fórum, com o que era possível apresentar a “Assembleia” como uma atividade conclusiva. Não foram poucos os mal-entendidos que se criaram em torno disso na história do FSM, até nos mais bem sucedidos Fóruns-espaço.

A superação dessa divergência exige portanto, necessariamente, uma abordagem clara dessas visões antagônicas, pelo menos entre os que organizam Fóruns Sociais. Não me parece que um Fórum Social, menos ainda ao nível mundial, possa ser ao mesmo tempo as duas coisas. Ambos perdem com isso. Ou é um espaço ou é um movimento. Mas isto não significa que não possam existir concomitantemente. Desde que não entrem em competição um com o outro mas sim se apoiem mutuamente. Isto é, Fóruns-espaço e um movimento – até mesmo um “movimento dos movimentos”, como já se propôs – podem existir interligados, mas autônomos. Essa era a conclusão a que eu estava chegando antes de ser afogado pelos acontecimentos políticos no Brasil que relatei na primeira parte deste texto.


Como surgiu a opção Fórum-espaço?

Quando comecei sua redação, fiz um esforço de memoria sobre os caminhos que nos levaram à proposta de Fóruns-espaço. E vi que ela resultou de um processo coletivo de reflexão sobre as particularidades e potencialidades do instrumento que estávamos criando – que ganhou uma dimensão que surpreendeu a nós mesmos. Essa reflexão foi estimulada igualmente por outras iniciativas politicas que surgiram nesse período da historia da Humanidade, como especialmente o movimento Zapatista no México.

Mas nesse processo foi a meu ver determinante uma opção embutida na proposta de realizar um encontro alternativo a Davos: restringir a participação, nesse encontro, à sociedade civil, entendida como conjunto de organizações e movimentos com objetivos sociais. Excluiríamos portanto os governos, as empresas e os partidos, embora seus membros pudessem participar como pessoas, como já ocorria com os próprios organizadores do Fórum. Excluímos também, por estarmos de acordo com a não violência na ação política, as organizações que combatiam militarmente o capitalismo ou os governos a seu serviço.

A priorização da sociedade civil se justificava pelo seu surgimento no panorama politico com iniciativa e autonomia. Até então mobilizada somente como massa de manobra de partidos e governos e manipulada de cima para baixo, ela também ainda não contava com um espaço próprio de articulação planetária – que afinal o FSM veio a proporcionar.

Este novo papel da sociedade civil tinha ficado claro na ação articulada que bloqueou em 1999, em Seattle, nos Estados Unidos, uma reunião da Organização Mundial do Comércio – OMC em que se tomariam decisões favoráveis somente aos países que dominavam o comércio internacional. E também antes disso, quando a pressão contrária de movimentos sociais impediu que se concretizasse o Acordo Multilateral de Investimentos – AMI, extremamente danoso aos países da periferia do capitalismo, que vinha sendo discutido secretamente na OCDE ainda em 1998 entre grandes empresas, investidores e governos.


A exclusão dos partidos

A exclusão dos partidos foi considerada por muitos como descabida, já que o Fórum era uma iniciativa politica e os partidos, em muitos lugares como no Brasil, são o instrumento institucional único para se pretender interferir de dentro no poder do Estado. Mas havia uma razão especial para isso.

Quando vimos mais de perto as organizações da sociedade civil que se interessaram em participar do Fórum, constatamos em primeiro lugar que ela era um enorme aglomerado de interesses e tipos de ação, muito fragmentado e com uma extrema diversidade. E se todas se situavam na opção contrária ao capitalismo assumida no FSM, havia tanto as que começavam a criticar esse sistema econômico como as que já estavam há muito tempo lutando contra ele. Logo concluímos que o respeito a todos os tipos de diversidade teria que se tornar um principio organizativo do FSM.

Percebemos em seguida que não poderíamos pretender diminuir a fragmentação dessa sociedade civil multifacética “organizando-a”, como se pudesse se transformar em um “movimento”, que sempre supõe a existência de uma direção e uma distribuição de funções, assim como disciplina na atuação de seus membros. O que poderíamos fazer era somente lhe oferecer um “espaço” de encontro.

Constatamos ainda que as organizações que a compunham competiam entre si quando atuavam paralelamente, na mesma área. Vimos então que o espaço de encontro que lhes ofereceríamos deveria permitir que se ouvissem umas às outras – da oratória à “conversatória”, como dizia um dos nossos bons pensadores – e, ao se reconhecerem mutuamente, superassem preconceitos, encontrassem convergências e até se unissem para ganhar mais força politica em sua ação.

Ora, a realização desses objetivos seria dificultada se os partidos participassem do Fórum enquanto tais. Eles têm, em seu próprio DNA, a disputa pelo poder politico, ou pelo menos pela hegemonia nesse poder. Para isso existem, cada um com suas propostas, e precisam capturar o poder do Estado para realizá-las. O que traz também para dentro deles mesmos a dinâmica da luta pela sua direção. Ou seja, os partidos são naturalmente e estruturalmente competitivos, a tal ponto que podem até decidir postergar a conquista do poder politico se para isso tiverem que se submeter à hegemonia de outro partido no controle desse poder.

Ao participar do Fórum as tendências por assim dizer “atávicas” dos partidos os levariam a tentar “instrumentalizá-lo” com vistas à realização de seus objetivos, reduzindo-o a mais um lugar de conquista de militantes e de disputas partidárias – o que afastaria do Fórum grande parte de seus participantes. Pior ainda, a dinâmica competitiva em que funcionam contaminaria necessariamente o encontro, empurrando para muito mais longe, no mundo da sociedade civil, a construção da sua união e cooperação com autonomia, assim como o esforço para se aliarem e se articularem para a construção do “outro mundo possível”.

Se nos voltarmos a tudo que aconteceu no Brasil neste ano de 2018 (como apresentado na primeira parte deste texto), seria possível identificar, entre as muitas razões de nossa derrota, nosso descuido com a formação politica de todos os cidadãos e cidadãs, mas principalmente nossa dificuldade de nos unirmos, ocupados que estávamos em competir até quanto à nossa capacidade de mobilização,


Não-diretividade e autogestão

O caráter multifacético da sociedade civil ativa que se interessou pelo FSM nos mostrou por outro lado a grande quantidade e variedade dos anseios por um mundo diferente daquele em que vivemos. Mas mais do que isso vimos mais claramente que, embora todos desejássemos chegar logo ao “outro mundo possível”, a construção que tínhamos pela frente era um enorme, demorado e complexo conjunto de tarefas que teriam que ser desenvolvidas por varias gerações, incluindo mudanças culturais, e que nenhum poder politico conseguiria organizá-las e muito menos comandar de cima para baixo, ainda que contasse com inteligências artificiais e enormes computadores.

Foi isto que nos fez concluir que seria irrealizável fazer convergir todos os participantes a algum programa de ação unificador, que pudesse ser adotado por todos ao seu término, como uma Declaração Final única. Após o fórum de 2004, na Índia, extremamente diversificado, criamos, diante do risco de uma excessiva dispersão dos debates e reflexões, espaços temáticos nos territórios em que os FSM se realizavam. Mas não nos propusemos a articular esses espaços numa direção única. Cabia a cada organização, ou grupo de organizações dentro do mesmo tema, formular seu próprio programa de trabalho.

Todas essas constatações nos levaram pouco a pouco a decidir que o Fórum teria fundamentalmente um caráter não-diretivo e seria definido como um espaço aberto. E foi nessa mesma perspectiva que adotamos a autogestão para a própria programação de atividades no Fórum – dentro de parâmetros que as fizessem caber no espaço e no tempo de cada Fórum – e que passamos, em Fóruns posteriores, a chamar nossos Comitês de Organização de Comitês de Facilitação.

Na verdade essas orientações tinham também como resultado dar aos participantes a certeza de que não seriam utilizados ou manipulados por organizações politicas ocultas, ao mesmo tempo que os fazia descobrir que os Fóruns eram abertos à experimentação, tanto para tirar do encontro o máximo de proveito para as lutas de cada organização como para se articularem a nível nacional e mundial.

Nessa auto-programação era forte a tendência tradicional a organizar conferências e painéis, com palestrantes – o mais das vezes sem equilíbrio de gênero – se dirigindo a uma plateia de ouvintes. Mas foram muitos os exemplos de experimentação metodológica. Como por exemplo a de um grupo de médicos brasileiros que se reuniu no primeiro dia para compartilhar o que estavam fazendo, se espalhou nos outros três dias participando de atividades em outras áreas, e voltou a se reunir no dia final para avaliar o que aprenderam e definir novas iniciativas. Ou como a de participantes franceses que, inspirados em autor norte americano, organizaram uma oficina tendo como tema a pergunta: o que fazer para que um Fórum Social fracasse? – o que permitia identificar mais claramente que opções organizativas garantiriam o sucesso do Fórum Social Mundial. Na experimentação da autogestão foi também significativa a experiência dos jovens, vindos de vários países, que assumiram, já no primeiro Fórum, a administração compartilhada do grande acampamento que montaram.

Surgiam também novas redes, uma opção organizativa só possível com organizações independentes de partidos e governos. Articularam-se atividades de resistência e de protesto, até em nível planetário, como a que posteriormente bloqueou a aceitação, pelos países latino-americanos, da ALCA , acordo que tentava impor no continente clausulas do Acordo Multilateral de Investimentos – AMI, a que já me referi.

Esses fatores explicam, a meu ver, a atração que o FSM exerceu, com um número cada vez maior de participantes, dos 20.000 do primeiro aos 150.000 em 2005 e 2009. Entre eles não se contava com a presença dos mais “oprimidos” pelo sistema – como desejariam os que criticavam o FSM por essa ausência. Mas se isto era quase impossível em um encontro mundial, que exige grandes deslocamentos, no segundo fórum no Brasil já vieram muitos grupos populares brasileiros, cruzando o país em caravanas. E em 2004 na Índia 20.000 de 120,000 participantes eram membros da casta mais baixa do país, os Dalits, conhecidos como “intocáveis”.

De qualquer modo, entre os participantes do Fórum era grande o numero dos que representavam os setores oprimidos da sociedade ou lutavam pelas suas causas. E como todos percebiam que poderiam eles mesmos criar espaços abertos como o do Fórum em seus países, mais próximos da sua realidade, sem precisar pedir a autorização de ninguém, ainda no ano de 2001 começaram a surgir outros Fóruns. Isto tornou possível dizer, no Fórum Social Mundial de 2009, em que emergiu nas discussões o conceito de Bem Comum, que o FSM já não pertencia a ninguém mas se transformara em um Bem Comum da Humanidade. Dando margem a que hoje se fale de “processo FSM”, muito mais amplo do que seus encontros anuais que a partir de 2005 passaram a se realizar a cada dois anos.


A horizontalidade das redes e a decisão por consenso.

Houve ainda outras orientações que decorreram também do fato do FSM ser um evento destinado a receber a sociedade civil, como a de adotar a horizontalidade das redes como principio organizativo – que se revelara muito eficiente nas mobilizações de Seattle em 1999. Como as outras orientações já indicadas, esta nem sempre foi bem aceita. São muitos os que ainda acreditam que somente estruturas piramidais disciplinadas têm eficiência (muito embora as próprias empresas capitalistas há muito tempo tenham se apoderado da formula rede para o seu crescimento, com o sistema de franquias, por exemplo).

Mas ao adotarmos, na própria programação das atividades nos Fóruns, a autogestão exigida pelas características da sociedade civil, concluímos que a horizontalidade das redes teria também que ser uma característica básica do FSM, com todos os seus participantes tendo a mesma importância e o mesmo poder.

Esta orientação teve que ser vivida pelo próprio Comité Organizador, especialmente frente à diversidade da atuação politica e da dimensão das organizações nele representadas. Decidimos então não ter coordenador ou porta-voz, e atuar como um coletivo de iguais, com atribuição de responsabilidades segundo as possibilidades de cada um.

E apesar de muitos ainda considerarem que só decisões tomadas por maioria de votos permitem passar rapidamente à ação, adotamos a decisão por consenso como um procedimento adequado a essa horizontalidade e a não disputa do poder dentro do coletivo. Levamos em conta, ao adotar essa orientação, que a decisão pelo voto da maioria é historicamente uma conquista da democracia mas, dentro dos movimentos políticos, leva à divisão: os vencidos se separam dos vencedores para criar novas organizações que façam aquilo que, segundo eles, deveria ter sido decidido

Considerando a própria historia do Comitê de Facilitação brasileiro – que nunca se dividiu e continua e existir como grupo de afinidade, embora tenha diminuído em número – vemos como a decisão por consenso pode ajudar na construção da união, objetivo essencial na ação politica porque aumenta a força, segundo a sabedoria popular. Consenso não é o mesmo que unanimidade. Ela é um consentimento. Consentimos em aceitar uma decisão com a qual não concordamos inteiramente se esta aceitação levar a que nos mantenhamos unidos. Como a divergência de uma só pessoa obriga às vezes a que não se tome determinada decisão, isto pode ser interpretado como um direito de veto dessa pessoa, o que posterga efetivamente certas decisões. Isto no entanto até que, depois de bem discutir a questão, a pessoa que não concorda diga que apesar disso aceita a decisão para assegurar o mais importante que é manter a união,

A decisão por consenso foi adotada naturalmente também no Conselho Internacional, embora nele tenham surgido muitas duvidas e resistências, só superadas quando éramos lembrados que o Conselho não era nem uma organização sindical nem partidária, e que valeria mais a pena demorar para decidir que se dividir.

É sempre importante lembrar a falta de unanimidade que existia em todas estas decisões, tal como mostra claramente o título do livro que escrevi sobre o FSM, lançado em 2005 em sua quinta edição em Porto Alegre . Eu o apresentei como um espaço aberto, e coloquei na edição portuguesa um cuidadoso subtítulo: “um modo de ver”, como se dissesse: “há outro modos de ver o FSM”. Ao mesmo tempo, outro membro mais ousado do grupo de organizadores do Fórum chamou seu livro “Fórum Social Mundial – uma invenção política” , mostrando que estávamos vendo o nascimento de um novo tipo de espaço político.


A contradição invisível

Mas o que possivelmente começou a criar mais problemas no processo FSM foi termos caído, sem perceber, numa contradição. De um lado a Carta de Princípios, elaborada depois do primeiro FSM (e não antes, como muitos talvez imaginem), enumerou orientações que de fato só consolidavam a opção Fórum-espaço. E, de outro lado, o Conselho Internacional do FSM foi criado e estruturado, exatamente na mesma ocasião, com base em princípios organizativos mais próprios a opção Fórum-movimento. E foi composto principalmente com representantes de movimentos em luta.

É possivelmente por isso que as tensões e divergências atuais não surgem dentro dos Fóruns, entre seus participantes, mas dentro do Conselho – especialmente quanto à possibilidade dele tomar posições como um ator político, como seria se o FSM fosse um movimento. Há muito tempo a solução para esse dilema foi a de cada um assinar moções e declarações enquanto membro do Conselho Internacional, em nome dele próprio e de suas organizações mas não em nome do Conselho. Mas esta solução não satisfaz os que esperam que um dia o FSM se transforme em movimento.

Essa contradição explicaria também porque surge a ideia do CI incluir os organizadores de Fóruns Sociais Mundiais (e também regionais, nacionais e temáticos), isto é, pessoas e organizações que se dispõem a organizar os Fóruns como um serviço ao processo FSM. Assim como explicaria porque, ao mesmo tempo em que surgem mais Fóruns Temáticos, centrados em áreas específicas de luta, diminuíram em número os Fóruns-espaço regionais, nacionais e locais. Alguns regionais e nacionais não conseguiram ter mais do que algumas edições, como foi o caso do Fórum Social Europeu. Provavelmente entre seus organizadores o numero dos preocupados em atuar nas lutas sociais e politicas em curso era maior do que o daqueles preocupados em criar espaços de encontro e reflexão.


O mundo mudou?

Mas os defensores da opção Fórum-movimento foram se fortalecendo, especialmente frente ao enfraquecimento dos Fórum-espaço – excetuado o FSM de Túnis de 2013, em plena Primavera Árabe – a partir do momento em que eles começaram a ser realizados em outros países, talvez porque (como chegou a ser dito), seu caráter era mais próximo da experiência da sociedade civil brasileira. E o sucesso do FSM de Salvador em 2018 possivelmente o confirme.

E quem defendia o Fórum-movimento tinha um argumento imbatível para questionar a orientação adotada nas edições dos eventos de caráter mundial: o mundo mudou muito desde 2001 e o FSM precisa se adaptar a essas mudanças. De fato só um avestruz discordaria dessa afirmação. Mas eu diria que o mundo não somente mudou, mas piorou. Com o sistema capitalista dominando totalmente as atividades humanas, o “outro mundo possível” tornou-se uma utopia ainda mais longínqua do que já era em 2001, apesar do nosso entusiasmo quando nos surpreendemos com o sucesso do primeiro Fórum Social Mundial.

A roda da historia parece ter enveredado, de vez, nestas quase duas décadas, no caminho que já trilhava de destruição da espécie humana sob o comando de um sistema econômico suicida. A Terra se transformou numa só praça de produção e num só mercado de consumo, e a busca insaciável de lucro levou, para aumentar sem limites a produção, à predação do planeta. O enriquecimento pessoal (a “prosperidade”) se tornou o objetivo de vida da maioria, até com fundamentos religiosos. A expressão famosa de Margareth Thatcher em 1997 – TINA (“There Is No Alternative”), que afirma que fora do mercado não há alternativa deixou de ser uma opção de politica econômica dos países e se tornou uma característica na economia mundial, em que até os chineses chamaram seu sistema de socialismo de mercado.


Qual a saída?

Se a análise acima for correta, a saída que apareceria como mais direta para superar nossas divergências seria a de assumir plenamente uma opção – espaço ou movimento – fazendo desaparecer a outra e ponto final. E talvez fosse o que muitos prefeririam.

Mas não acredito que esta seja a melhor saída não somente porque não queremos nos dividir mas porque de fato as duas opções não são excludentes. Pelo contrario, podem coexistir e o ideal é que coexistam e mesmo se articulem uma na outra.

Além disso, não seria desejável que os Fóruns-espaço desaparecessem. Eles se tornaram ainda mais necessários exatamente porque, como o mundo mudou muito e a luta por um “outro mundo possível” ficou ainda mais difícil, a ação eficaz de um “movimento” por esse “outro mundo possível” vai exigir muita reflexão a respeito. Ora, aprofundar a reflexão corresponde precisamente a uma das funções mais importantes dos Fóruns-espaço.

Por exemplo, em relação à questão dos partidos, é certo que se criarmos um novo “movimento” vinculado ao FSM teremos necessariamente que encontrar uma maneira dele dialogar, e de forma intensa, com os partidos, sem perder sua autonomia.

Por outro lado, os fóruns-espaço não contribuíram tanto quanto poderiam para realizar outro dos objetivos que foram sendo definidos para o FSM: a experimentação de práticas politicas novas. Ou seja, ainda não multiplicamos suficientemente os espaços onde possamos “aprender a desaprender” muitas das práticas politicas com que estamos habituados – usando a expressão de um militante do Partido Comunista Francês que assim compreendeu o sentido do FSM, ao participar de um dos primeiros Fóruns Sociais Locais organizados naquele país. Assim como onde possamos experimentar concretamente mais a cooperação do que competição.

Em consequência, se deixarmos de lado o FSM-espaço, como instrumento também desse tipo de experimentação, para criarmos um novo movimento somente numa perspectiva de Fórum-movimento, seguramente continuaremos “patinando” indefinidamente em velhas práticas até sermos totalmente esmagados pelas pesadas botas da ultra-direita.


A política como ela é?

O FSM se situa no esforço da humanidade para que a politica venha a ser o que deve ser – uma ação coletiva de busca do que é melhor para todos, respeitada a diversidade dos interesses. Mas é incomensurável a distância a percorrer para que o seja. As práticas politicas atualmente destroem os partidos e a própria politica e abrem espaço para os “salvadores da pátria”. Contribuir para a renovação das práticas politicas talvez seja de fato um dos papeis mais importantes que o FSM possa atribuir a si mesmo – através dos Fóruns-espaço – na construção do “outro mundo possível”.

O espirito competitivo sendo a mola mestra da dinâmica capitalista, ele contaminou toda a sociedade. “É preciso sempre levar vantagem” disse num anuncio de publicidade um campeão mundial brasileiro de futebol. A competição inunda nossas vidas, desde os bancos de escola, com competições, campeonatos, prêmios, concursos, em que a grande satisfação é a obtida por ter sido o primeiro, o número um, e não pelo que se faz ou se produz. É difícil aceitar uma posição secundária no palco. Quem não sabe se autopromover fica necessariamente para trás.

E como não podia deixar de ser, esse espirito competitivo contaminou também a ação politica, movendo as pessoas mais profundamente até do que interesses de classe ou de grupos. Até mais porque na ação politica interferem também outros fatores ligados às fraquezas humanas, como a vaidade, o egoísmo e o gosto do próprio poder. Assim, ela se tornou o espaço dos “golpes”, em que vence sempre o mais esperto, o mais oportunista, o mais pragmaticamente frio, o que salta mais rapidamente sobre o cavalo que passa encilhado à sua frente, o mais capaz de surpreender e enganar seus opositores, para que prevaleçam suas opções e interesses. E mais ainda quem aceita sem titubear que os fins justificam os meios, um princípio perverso que nas guerras eleva seu nível de barbárie e na paz o da corrupção nas empresas.

O que acaba de acontecer no Brasil foi a vitória nas eleições de um candidato capaz de mentir descaradamente e de enganar eleitores com informações falsas ou direcionadas pela manipulação de informações em redes sociais. E como cumulo da desfaçatez, um dos seus slogans mais repetidos era: “Chega de mentira. Agora será sempre a verdade!” – tradução direta de um dos slogans também mais repetidos por Trump.


A velha politica dentro de casa

Um pequeno episódio vivido pelo Comitê de Organização do primeiro FSM pode ilustrar como essas práticas estão muito perto de nós. Ele ocorreu em torno da decisão de não terminar o FSM com uma Declaração Final, tomada por consenso pelas razões que já indiquei.

Ao nos reunirmos depois de um descanso, fomos informados que havia sido publicado no site do FSM um “Apelo para a mobilização”, junto com a “Nota final de Informação” dos organizadores. Alguns participantes, que o viram como Documento Final do FSM, já tinham dito que não o subscreveriam e por conta disso se afastariam do FSM.

Obviamente essas informações causaram um grande mal-estar e quase nos levaram a decidirmos não seguir juntos, embora já comprometidos com a realização da segunda edição do FSM. Mas discutimos bastante e, recuperando a calma, decidimos reconstruir nossas relações de confiança. Como todos tinham experiência politica, sabíamos que outros episódios semelhantes poderiam ocorrer, como de fato ocorreram. Modificamos a posição do “Apelo” no site, e uma nota explicou sua natureza de proposta emanando autonomamente de participantes do Fórum.

Na verdade tínhamos sido vitimas de um pequeno “golpe” de alguém que dispunha da senha para administrar o site. Mais esperto ou mais ousado, resolveu, por sua própria conta ou não, nele inserir o “Apelo” que possivelmente sua organização tentara, sem sucesso, fazer adotar como Declaração Final do FSM (afinal de contas ele tinha sido assinado por pelo menos cem organizações – mas outras 900 tinha participado daquele Fórum). Era o “se passar, passou”, como se costuma dizer…


Um novo desafio pela frente

Em conclusão sobre o que fazer, teríamos que encontrar criativamente – e rapidamente – uma forma de contarmos com as duas opções (“Fóruns-espaço” e “movimento”), interligadas, cada uma com sua função, para podermos ao mesmo tempo agir e refletir sobre nossa ação. Associando pessoas que participem de encontros de debate e de lutas concretas, segundo as possibilidades e necessidades de cada um.

Nessa perspectiva, seria menos desgastante para todos deixar de lado a disputa pela revisão da Carta de Princípios do FSM. Ela é destinada a orientar Fóruns-espaço (o que torna útil a sua cuidadosa leitura por aqueles que queiram organizar Fóruns-espaço). Seus princípios estão todos ligados uns aos outros, num conjunto lógico voltado para esse tipo de Fórum. Mudar alguma coisa dentro dela pode desestruturar essa lógica e criar um Frankenstein de difícil compreensão. Seria melhor, ao criamos um novo movimento, que ele fosse dotado de sua própria Carta de Princípios, dentro da lógica de movimentos visando lutas concretas mas experimentando práticas novas, segundo o principio de Gandhi que dizia: “seja você mesmo o mundo que você quer que exista”.

Também não se trataria, em minha opinião, de organizar Fóruns-Sociais-Mundiais-movimento ao lado do Fóruns-Sociais-Mundiais-espaço, o que geraria uma confusão inútil. Teríamos que criar algo diferente, que fosse efetivamente um movimento da sociedade civil e não um Fórum, mas referido ao FSM para coexistir com os Fóruns-espaço. Desse ponto de vista seria até cabível organizar um Fórum-espaço-temático sobre a organização desse novo movimento, em que pudéssemos recolher a experiência dos movimentos da sociedade civil, de tipo novo, que surgiram em muitos lugares do mundo possivelmente inspirados no FSM e suas propostas de horizontalidade, não-diretividade e autonomia na luta politica, como os Occupy Wall Street nos Estados Unidos e os Indignados na Espanha, assim como os Nuit Debout da França e, mais recentemente, nesse mesmo pais, os Gilets Jaunes.

Alguns certamente dirão: mas manter os FSM-espaço não é uma insistência inoportuna dos organizadores dos primeiros FSM, a eles apegados, como figuras paternas ou maternas pouco amadurecidas que não aceitam a independência e a autonomia dos seres que fizeram nascer? É o que muitos já disseram. E seria possivelmente uma dúvida dos que não entraram no processo-FSM desde o inicio ou não participaram da organização de Fóruns. Espero no entanto que este texto possa trazer esclarecimentos sobre isso.

Concluindo, talvez até pudéssemos sonhar com muitos FSM-espaço se realizando em todos os níveis (dos locais aos mundiais e usando plenamente os novos instrumentos de intercomunicação criados pelo avanço tecnológico), ao mesmo tempo que um novo movimento fosse se estruturando, Com um evento mundial se realizando de tempos em tempos (sem medo de ser chamado de Woodstok de esquerda), para o reencontro periódico de participantes dos Fóruns-espaço e do movimento, irmanados na busca de novos caminhos de ação. Um tal evento alimentaria o ânimo de todos e festejaria a dimensão e a força que terá ganho uma “sociedade civil ” ainda mais diversificada mas mais articulada na luta por realmente mudar o mundo.

Todo o proposto até aqui exigiria necessariamente a revisão da função do Conselho Internacional, sua composição e seu funcionamento. Mas não seria o caso de tratar disto agora porque alongaria demais este texto. Que espero, como eu já escrevi ao terminar sua introdução, possa interessar leitores que aumentem o circulo dos que querem fazer o FSM prosseguir em sua caminhada.

12/01/2019